*Frei Dom Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.

 

A pergunta é:  o que nos faz homens contemplativos?  São seres humanos que fazem entrar a realidade toda. É o caminho do amor, o caminho do sofrimento e também o caminho da oração. As experiências de amor e sofrimento são  por excelência as experiências pelas quais as pessoas podem transformar-se. O caminho da oração é neste processo de transformação de significado essencial. É que a oração é uma atitude de vida em que a pessoa com sinceridade e consistência, reconhece passo por passo, sua pequenez, vulnerabilidade, negatividade e falhas e as leva para Deus. Mas sem amor e sofrimento a nossa oração não será mais do que “recitar orações”. Neste ponto  João da Cruz e Teresa de Ávila são nossos grandes mestres. 

O que é então o fim último dessa maneira de viver que procura superar uma atitude dualística e fazer entrar a realidade na sua unidade? Deus veio realmente morar entre nós. Ele está realmente presente entre nós em Jesus e em seu Espírito Santo. A realidade toda traduz sua presença. Crer nele não é ‘uma verdade ou um fato’ que  aceitamos como verdadeiros,  mas faz entrar a realidade toda. No nosso crer não se trata daquilo que vemos, mas ‘como vemos’.

Contemporâneos de Inácio de Loyola diziam dele que era contemplativo na ação. É melhor dizer: contemplativo na relação. É preciso situar a contemplação no seio da própria relação inter-humana. Isto é algo muito específico do cristianismo. Faria até uma distinção entre contemplação cristã e contemplação religiosa. Existe uma contemplação no nível de uma religiosidade geral do ser humano. Muitas vezes, mesmo nos nossos meios cristãos se percebe que contemplação é vista no nível da religiosidade geral do homem. Aquilo que é especificamente cristão não significa de modo nenhum que seja menos humano. Até podemos dizer que a contemplação cristã é o que há de mais humano, profundamente humano, e por isto perceptível mesmo fora do cristianismo.  Dietrich Bonhoeffer repetia nas suas cartas escritas na prisão: “o Deus que se revela em Jesus Cristo põe ao avesso  tudo o que o homem ‘religioso’ esperaria de Deus”.

a) Muitos teólogos modernos repetiram que Jesus falou muito pouco de Deus e muito do Reino de Deus; que não falou de ‘buscar primeiro a Deus’ mas ‘de buscar primeiro o Reino de Deus e a sua justiça’, ou preparar-se para entrar no Reino de Deus.

b) Jesus não dá aulas de teologia nem de espiritualidade, não revela atributos do ser de Deus. A invocação Abbá não revela um atributo divino mas um modo de relacionar-se com Deus. Jesus simplesmente anuncia o amor incrível de Deus aos homens. Por isto Jesus rejubila quando vè que os pequenos compreendem melhor os mistérios de Deus que os poderosos da terra.

c) Muitas parábolas e comparações de Jesus manifestam o amor que ele tinha à natureza, ás sementes, ao cuidado dado à vinha, às videiras. Mas colocando-nos em contato com Deus, Jesus não nos convida a agradecer ou a ficar absorvidos pelo mistério do universo (embora possamos supor isto também). A oração que ele ensina é um pedido da chegada do Reino de Deus que é a vitória do plenamente humano: sustento suficiente para todos e reconciliação entre as pessoas, a justiça e a paz, em uma palavra.

Santo Agostinho tinha aquela sensibilidade em admirar a beleza da natureza, mas na hora de buscar ali a Deus, sentia como uma voz que lhe dizia: ‘Interroguei o mar, os abismos e os seres vivos, e todos me responderam: ‘Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós’ (Confissões, Livro X, 9). A beleza natural pode sugerir Deus, a história manifesta a vontade de Deus. E a história é o tecido de todas as nossas relações humanas.  E este ensinamento de Jesus recebe uma explicitação  esplêndida  na sua ressurreição, recapitulativa de todo o universo (‘garantia da nossa herança, até o resgate completo e definitivo, para louvor da sua glória ‘ Ef 1,14).

d) O amor de Deus fez-se visível em Jesus Cristo. A partir desta relação as relações humanas se tornam transformadas, ‘cristificadas’, divinizadas. E esta transformação deve afetar necessariamente nossa maneira de enfocá-las. A gente vê: ser contemplativo na relação, gera a inteligência do mistério de Cristo (Ef 3,4).

e) Por estas razões nas primeiras comunidades dos cristãos havia as expressões ‘em Cristo’ e ‘no Senhor’ que serviam para caracterizar todas as relações humanas (parentesco, família, escravidão...) inserindo-as numa espécie de atmosfera nova que as transforma. É esse viver ou estar ‘em Cristo’ que fundamenta uma contemplação nas relações humanas.

f) No fim da sua vida os fiéis pediam a João evangelista que explicasse as coisas de Jesus; eles se contentava em repetir: ‘Amai-vos uns aos outros’. Era o que ele sempre repetia. Para responder à curiosidade dos cristãos que queriam que ele explicasse mais, João respondia: ‘é que nisto está tudo, e isso basta’. De fato está aí a fé-esperança-caridade; está aí Cristo, a Igreja e o melhor do homem.

 

Consequências

Todos esses dados marcam uma diferença no modo de conceber a vivência da fé (ou a relação com Deus) a partir de uma religiosidade geral ou a partir do cristianismo que segue a Jesus porque crê nele  como revelação de Deus.  O que leva a uma consequência: uma diferença fundamental entre o cristianismo e a idéia genérica de religião, na concepção da dimensão orante e a contemplação cristã.

O caminho do cristianismo é mais difícil que o caminho da religiosidade geral. Para esta a relação com as pessoas podem ficar excluídas da relação com Deus.  No cristianismo, porém,  a relação com as pessoas e o amor fraterno no podem ficar fora da oração e da contemplação cristãs.

Que hoje em dia muitos se afastam do cristianismo para ficar mais no nível duma religiosidade geral, explica porque julgam o cristianismo muito reducionista: na formulação das verdades da fé, na moral, na legislação... Não é superficial a suspeita de que a qualificação de reducionista endereçada ao cristianismo seja uma desculpa interessada em para não  abrir-se para Deus através daquilo que Jesus chamava ‘a porta estreita’; ou então não chegou a captar  a profunda transformação teologal das relações humanas dentro do cristianismo como descrevemos na parte anterior.

Essa ‘transformação cristã’ deve atingir a nossa maneira de enfocar as relações humanas, precisamente porque é uma revelação que choca com a mais elementar das nossas experiências: a grande dificuldade e a árdua tarefa que  as relações humanas muitas vezes provocam. Quando João da Cruz voltando para Castilha, depois de ter trabalhado no campo numa colheita de grão de bico, comentou: ‘é mais lindo manejar estas criaturas mortas  que ser manejado pelas criaturas vivas’ (Provavelmente há uma alusão a Nicolau. Doria e seus partidários). Podemos dizer que hoje talvez vivemos uma época histórica de uma deterioração das relações humanas e de constantes desavenças em todos os campos: crescem os racismos e os nacionalismos excludentes, as diferenças de classes sociais, as culturas que preferem entrar em choque ao invés de encontrar-se, fracassam os casais e aumenta a violência do gênero, os partidos políticos que preferem considerar-se como totalidades e não como ‘partidos’. Existe também um certo autismo cultural que nos faz considerar os demais como meras objetos ou estímulos, não como sujeitos de dignidade absoluta.

Crentes ou não-crentes, todos deveríamos fazer um esforço para engraxar as junturas da nossa convivência, se não quisermos deslizar numa situação problemática   que poderia terminar numa catástrofe sem precedentes.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita e 1º Bispo de Itaguaí/RJ - foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.