ESPIRITUALIDADE CARMELITANA: Da comunhão de bens e do não ter propriedade: Regra do Carmo, números 12 a 13

Os Cristãos tinham tudo em comum- A Providência Divina passa pela organização fraternal

Frei Carlos Mesters, O. Carm.

O Texto  da Regra

  1. Nenhum dos irmãos diga que algo é propriedade sua, mas tudo entre vocês seja comum, e seja distribuído a cada um pela mão do prior, quer dizer, pelo irmão por ele designado para este serviço, conforme cada qual estiver precisando, levando-se em consideração as idades e as necessidades de cada um.
  2. Contudo, na medida em que alguma necessidade de vocês o exigir, lhes é permitido possuir burros ou mulos, e algum tipo de animais ou de aves para criação.

1- Um pouco de história: sobre a comunhão de bens

Na época em que os primeiros carmelitas começavam a sua vida no Monte Carmelo, os grandes mosteiros da Europa tinham muitas propriedades de terra. Por isso, podiam levar uma vida autônoma, distante do povo, dedicados inteira e exclusivamente à oração e ao trabalho (Ora et Labora). Os monjes tinham pouco contato com o povo e viviam alheios às grandes mudanças econômicas, sociais e políticas que estavam ocorrendo nos séculos XII e XIII. Por causa da insegu­rança gerada pelas mudanças, surgiam grupos fanáticos (Cátaros, Albigenses e outros) que confundiam e desviavam o povo, sobretudo o povo pobre, os menores. Os monjes não se sentiam chamados para ajudá-los, e o clero secular não estava preparado nem tinha condições de dar uma resposta ao problema dos pobres que enchiam as cidades (burgos), e de anunciar-lhes a Boa Nova.

Diante desta problemática foi surgindo, aos poucos, um novo tipo de Vida Religiosa que procurava ser uma resposta de Deus à nova situação em que vivia o povo. Era o movimento dos Mendicantes. Foi sobretudo São Francisco de Assis que soube dar forma a este novo tipo de Vida Religiosa. Os mendicantes eram pobres com os pobres, partilhavam tudo entre si e com o povo. Não tinham propriedade e viviam em pequenas fraternidades a serviço do povo, sobretudo dos menores, e anunciavam a eles a Boa Nova. Em troca, recebiam alguma esmola. Daí o nome Mendicante.

Ora, a insistência da Regra de Alberto na comunhão de bens e na proibição de os frades carmelitas terem alguma propriedade estava de acordo com este novo tipo de Vida Religiosa que estava surgindo na Igreja. A observância destas normas da Regra (Rc 12 e 13) fazia com que eles, aos poucos, fossem empurrados para dentro da igreja que se renovava, levados a ficar do lado dos "menores" com a missão de serem no meio deles testemunhas vivas do Evangelho.

A fraternidade assim vivida era semente e amostra da nova sociedade que eles sonhavam. Eles já não serviam ao senhor feudal, mas sim a Jesus e a Nossa Senhora, e eram irmãos entre si. Não eram como as dioceses e os mosteiros, mas viviam perto do povo e concretizavam para eles o evangelho. Esta vida fraterna no meio do povo era um ensaio do Reino, uma Boa Notícia para os pobres. O voto de pobreza não era só um meio de ascese para poder rezar melhor, mas também uma forma concreta de se contestar a injusta desigualdade social. Dentro do contexto daquela época, sua vida tinha um alcance político.

Era a necessidade das pessoas (não o lucro) que os orientava na posse comum dos bens e na sua distribuição. A distribuição era feita por um responsável indicado pelo prior (Rc 12). Os bens em comum eram coisas simples: aquilo que recebiam do povo; burros e galinhas (para o trabalho e a viagem); fruto do trabalho (roçado em torno das celas).

No entanto, não era fácil de observar aquela exigência da Regra de não ter propriedade. Como vimos na Introdução, durante os primeiros quarenta anos, de 1207 até à aprovação definitiva da Regra em 1247, os papas tiveram que intervir várias vezes, para impedir que este ponto fosse abandonado. Em 1247, na aprovação final, o papa Inocêncio IV, mesmo permitindo que possuissem alguns animais (Rc 13), reforçou a proibição acrescentando no número 4 a cláusula “com abdicação de propriedade”.

 

2- O ideal da fraternidade: fazer do uso comunitário dos bens um caminho espiritual

O primeiro passo neste caminho:

Não devo relacionar os bens comigo, com a minha pessoas, nem apropriar-me deles como sendo meus, mas sim fazer com que sejam relacionados com a comunidade a que pertenço. Não isolá-los do conjunto, mas possuí-los como parte do todo. Usar todos os bens materiais e espirituais, dons e qualidades, conquistas e diplomas, estudos e capacidades, tudo, como sendo uma parte dentro de um conjunto maior que é a comunidade.

O segundo passo neste caminho:

Devo ver as coisas e os bens como dons recebidos. Pois tudo me é distribuido pela mão do responsável pela comunidade. A distribuição não é anônima, mas é feita por um irmão ou uma irmã, e ele ou ela olha as necessidades e a idade de cada um. O voto de pobreza não consiste em privar-me de tudo, mas sim em aprender a receber tudo que tenho e sou como um dom bem pessoal vindo da comunidade para mim, nesta minha necessidade e nesta minha idade.

O terceiro passo neste caminho:

Devo olhar as coisas com um olhar que abre tudo para Deus. Se tudo me vem do irmão e da comunidade, se tudo faz parte de um conjunto maior, onde tudo tem o seu lugar, inclusive eu, a mi­nha pessoa, então tudo tem a sua organização a partir daquele que criou tudo para todos e que faz com que tudo seja revelação da sua presença. Tudo se torna relativo frente ao absoluto de Deus. Não se agarrando a nada, recebe-se tudo. O caminho para se chegar ao todo passa pelo nada. Esta atitude transformará minha vida numa oração permanente de louvor e de ação de graças, como diz o salmo: "Eu sou oração!" (Sl 109,4). Transforma a comunidade e faz com que ela seja comunidade orante e profética a serviço do povo, sobretudo dos "menores".

3- O fundamento da fraternidade: o modelo das comunidades dos primeiros cristãos

Os números 10 a 15 da Regra descrevem o miolo da vida carmelitana, o ideal da fraternidade orante e profética. A proibição de ter propriedade e a comunhão de bens (Rc 12 e 13) estão no centro desta descrição. São o miolo do miolo. A própria estrutura literária o revela:

A-  Tarefa de cada um: Oração e vigília individual (RC 10)

B-  Oração litúrgica em comum (RC 11)

C-  Comunhão de bens e proibição de ter coisa própria (RC 12 e 13)

B- Celebração Eucarística em comum (RC 14)

D- Tarefa da comunidade: Revisão e zelo pelo bem comum (RC 15)

Alberto tinha diante de si o modelo da comunidade dos primeiros cristãos de Jerusalém, da qual se diz nos Atos dos Apóstolos: "Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles" (At 4,32). Assim também entre os carmelitas: tudo era de todos! Naquele tempo, este era também o ideal que animava a renovação da Igreja e da Vida Religiosa.

Comparando o ideal da Regra (Rc 10 a 15) com o que dizem os Atos dos Apóstolos a respeito da comunidade dos primeiros cristãos (At 2,42-47; 4,32-35), aparece o seguinte esquema:

 

1. Oração e vigilância (Rc 10)

2. Oração litúrgica (Rc 11)

3. Comunhão de bens (Rc 12 e 13)

4. Celebrar eucaristia (Rc 14)

5. Revisão semanal (Rc 15)

"Perseveravam na oração" (At 2,42; 4,24)

"Frequentavam o Templo" (At 2,46-47)

"Tinham tudo em comum" (At 2,42.44; 4,32.34-35)

"Fração do pão nas casas" (At 2,42.46)

"Eram um só coração e uma só alma" (At 4,32; 1,14)

Estes cinco pontos que marcaram a vida comunitária dps primeiros cristãos, formam também a base da fraternidade do jeito que está deve ser vivida pela famí­lia car­melitana. Vejamos:

1- A fraternidade deve alimentar-se da Palavra de Deus e da oração permanente: isto exige Lei­tura Orante e meditação constante (Rc 10).

2- A fraternidade deve ter a sua expressão comunitária: oração litúrgica ou celebra­ção comunitária da Palavra de Deus (Rc 11).

3-A fraternidade deve ter a sua expressão econômica bem concreta na partilha dos bens, na iguald­ade básica real, na pobreza que os leva a ficar do lado dos "menores" (pobres) (Rc 12 e 13).

4- A fraternidade deve alimentar-se da Eucaristia, que é a participação na Morte e Ressurreição: doação radical de si a Deus e aos irmãos (Rc 14).

5- A fraternidade se consolida e se aprofunda através da revisão semanal, que promove a co-rres­ponsabilidade de todos no andamento do conjunto e no bem-estar de cada um dos irmãos (Rc 15).

Este ideal de fraternidade orante e profética no meio do povo, próprio dos Carmelitas, está situado dentro do conjunto da Regra da seguinte maneira:

 

Rc 4 a 9

A infraestrutura da vida

Garante as condições necessárias

Rc 10 a 15

O ideal a ser realizado

Imita a comunidade de Jerusalém

Rc 16 a 21

Os meios para realizar o ideal

A riqueza da tradição Monacal

A 1ª parte (Rc 4 a 9) lhe assegura o espaço ou lhe fornece a infraestrutura necessária.

A 2ª parte (Rc 10 a 15) o descreve como sendo cópia da comunidade de Jerusalém.

A 3ª parte (Rc 16 a 21) lhe proporciona os meios necessários para poder realizá-lo

*Do livro; AO REDOR DA FONTE-COMENTÁRIO da Regra do Carmo