*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm, In Memoriam. (30/11/ 1931 +11 de junho de 2014)
Ainda recentemente um historiador holandês anunciou um projeto seu de escrever uma nova biografia de Tito Brandsma.[1] O que motivou o escritor foram não só seu estudo de inúmeras fontes que oferecem novos dados, mas também a importância- de uma visão mais crítica da vida e do trabalho desse carmelita que corresponda mais à realidade dele mesmo e da época turbulenta em que ele viveu. A personalidade de Tito seria mais complexa do que a imagem que dele durante decênios foi apresentada à admiração e à devoção pública. A compreensível emoção provocada por sua morte, teria comprometido a visão da realidade. Isto seria uma pena. Jamais deve-se despojar Tito Brandsma da sua humanidade com as contradições e limitações que ela possa apresentar. Do contrário perderia seu interesse para a geração de hoje. Tito é uma figura suficientemente pura para passar por essas provas críticas.
É evidente que não podemos privar uma pessoa espiritual ou mesmo santa, da sua humanidade. Não sobraria nenhuma possibilidade para falar da sua espiritualidade ou santidade que não teriam nenhum significado histórico. Espiritualidade sem história não existe e é só a partir da sua história que pode ser conhecida e descrita. Daí o caráter interdisciplinar da espiritualidade como ciência. A experiência da nossa relação com Deus sempre supõe um contexto histórico caracterizado por determinados fatores culturais.
O discurso que Tito Brandsma, como reitor magnífico pronunciou, em 1932, no dies natalis da Universidade Católica de Nijmegen sobre o conceito ou imagem de Deus, conserva uma atualidade surpreendente. Na época a formação teológica trazia o carimbo da neo-escolástica caracterizada por uma linguagem especulativa e abstrata. Falava-se de Deus como se tratasse de uma espécie de realidade eterna, atemporal e imutável sobre a qual a nossa busca de peregrinos não tinha muito a dizer. Insistia-se, sem dúvida, na prática das virtudes, mas, como Tito diz no seu discurso, não sem perigo de reduzir a vida espiritual a uma prática exterior. Para Tito, porém, Deus não independe de formas humanas de conhecimento que são marcadas pelo tempo e pelo contexto. Neste ponto o professor Brandsma quer insistir na necessidade de uma abertura em relação a novas evoluções na espiritualidade.[2]
"Credo che sia nostro dovere guardare attorno a noi al fenomeno della negazione di Dio. Non perché, innanzittutto, dobbiamo assumere verso di esso un atteggiamento di difesa; bensì, a causa di questo fenomento, trarre motivo per far conoscere l'immagine di Dio in forme nuove, per adattarne il concetto alla cultura moderna. In modo tale che dalla ricchezza di questo concetto venga messa in evidenza quell'aspetto della grandezza del nostro Dio che più oggi affascina... Vi è una così grande ricchezza di aspetti sotto i quali si può considerare l'immagine di Dio, che dobbiamo stare attenti a non appoggiarci troppo sul vecchio e a non ritenere sufficienti le immagini tradizionali. Tempi nuovi richiedono forme nuove....Non basta insistere sull'esigenza di mettere in pratica la fede in Dio e impegnarci in questa direzione: occorre di più. Dobbiamo comprendere il nostro tempo e non estraniarcene. Anche noi siamo figli del nostro tempo: siamo-lo con chiara conscienza! Lasciamo che il tempo attuale agisca su di noi con quanto di buono ha"[3].
Neste tempo de transformação o discernimento torna-se uma necessidade. O conceito de Deus na nossa época tem um caráter pragmático. A verdade para o homem moderno é pragmática. O que explica porque muitos se afastam de Deus e que muita injustiça existente no mundo é considerada uma realidade evidente. Além disto a imagem que se tem de Deus tem caráter intuitivo. Mas freqüentemente a intuição não é mais que o resultado de um simples raciocínio que se tornou inconsciente: o hábito torna-se uma segunda natureza.
Tito Brandsma iniciou seu discurso com a seguintes palavras: "Tra le numerose domande che mi pongo, nessuna me preoccupa di più della questione perché l'uomo con il suo sviluppo e nella fierezza orgogliosa del suo progresso, si allontani in cosi gran número da Dio".A época dos anos 20-30 que marcaram mais a atuação de Tito, já era uma época de mudanças. Já se falava do aparecimento de uma "sociedade aquisitiva". Nos dias atuais percebemos que a história se acelerou. As mudanças se tornaram vertiginosas, comunicando-se a todos os cantos do mundo, configurando uma mudança de época, mais que uma época de mudanças. É um fenômeno que afeta a vida dos povos e o sentido religioso e ético dos que buscam o rosto de Deus, mas que são desafiados por novas linguagens do domínio técnico. É muito significativo o título do livro escrito em 1977 por Erich From: "Ter ou Ser" mostrando que são os BENS, não mais o "bem" ou os valores que constituem o eixo articulador da organização social. É uma caça de bens, não em vista de necessidades, mas em vista de desejos de possuir[4].
O que Tito defende como necessária para o nosso tempo é "a contemplação de tudo que existe na sua dependência de Deus e na sua origem em Deus" É ver assim a sua ação, discernir assim o seu Ser, antes de tudo em nós mesmos.
Os homens devem reencontrar Deus e viver na sua contemplação. Chamam isto de mística: que seja! Até aceito com satisfação se nisso posso ver a expressão da verdade de que na mística podemos observar o progresso ulterior e mais alto daquilo que potencialmente foi depositado na natureza humana..Contanto que se saiba que a realização dessa potencialidade só acontece por especial graça divina. De nenhuma maneira ela é em conflito com a natureza; pelo contrário, é vocação da natureza humana ver a Deus como o mais alto que ela possa conhecer. É lamentável que isso não seja mais entendido"[5].
Percebe-se que o discurso de Tito Brandsma segue um caminho que partindo da filosofia, passa pela teologia para chegar à mística. Não recorre a uma retórica que arrasta os auditório.. O pensamento de Tito em movimento para o mistério de Deus é simples e toca o interior dos seus ouvintes.Um dos colegas-professores de Tito, o jesuíta Jacques van Ginneken, observou depois de ouvir o discurso: "Se não me engano, havia no discurso de Brandsma tonalidades da sua própria experiência mística"
[1] O historiador Ton Crijnen falou do seu projeto numa palestra feita em 3 de novembro de 2007. Uma síntese dessa palestra foi publicada no Informativo da Província holandesa dos carmelitas Achter de Karmel, 2007/5 pp.11-12
[2] Kees Waaijman, Naar God toe denken met Titus Brandsma, in Achter de Karmel, 2008/3, pp 8-12. Trata-se de uma parte de uma palestra de Kees Waaijman, feita no simpósio realizada em Nijmegen, em 12 de abril de 2008 por ocasião dos 40 anos do Instituto Tito Brandsma.
[3] O texto do discurso, sobre Godsbegrip (conceito de Deus) e outros textos de Titus Brandsma, foram publicados numa antologia a cura de Bruno Borchert- Tius Brandsma, Mystiek leven/Een bloemlezing, Ed. B.Gottmer, Nijmegen, 1985, O texto citado encontra-se nas páginas 75-77. .
[4] Ver Diretrizes Gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010, Documento aprovado na Assembléia Geral dos Bispos do Brasil, em abril de 2008. Capítulo I A realidade que nos interpela.
[5] Godsbegrip, pp 106-107.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.