Frei Carlos Mesters, O. Carm.

1-O caminho de Abraão e Sara: caminho de todo o povo

“Vocês que buscam a justiça e procuram a Deus. Olhem para a rocha de onde foram talhados, olhem para a pedreira de ontem foram extraídos. Olhem para Abraão, seu pai, e para Sara, que os deu à luz, Quando os chamei eles eram um só, mas se multiplicaram por causa da minha bênção!” (Is 51,1-2)

As histórias Abraão e Sara (Gn 12 a 22) refletem não em primeiro lugar a história do casal no longínquo passado de 1800 antes de Cristo, mas são modelo para o povo do Cativeiro saber como combinar a busca de Deus e a busca da justiça. Deixam transparecer como foi difícil para o povo unir estas duas dimensões da caminhada que Deus estava pedindo e os discípulos estavam propondo. 

Javé disse a Abrão: "Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas". Abrão partiu conforme lhe dissera Javé. E Ló partiu com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. Abrão levou consigo sua mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens que possuíam e os escravos que haviam adquirido em Harã. Partiram para a terra de Canaã e aí chegaram.  (Gn 12,1-5)

A promessa de ser pai de um povo e fonte de bênção para toda a humanidade é bonita e atrai. Mas a condição para alguém poder ser pai de um povo é ter ao menos um filho. Abraão já tinha 75 anos e sua esposa Sara era estéril. A condição para Abraão crer na promessa de Deus era crer que Sara sua mulher pudesse ter um filho. Difícil crer nesta promessa! Era mais fácil crer na observância, isto é, no projeto que os dois iam elaborando como possível alternativa para uma promessa aparentemente impossível. Assim fizeram Abraão e Sara. Era muito difícil para eles combinar as duas buscas: de Deus e da justiça. Eles foram aprendendo a duras penas, ao longo dos anos.

Foram quatro as propostas alternativas que os dois fizeram para ficar só com a observância, sem precisar crer na promessa, sem precisar levar a sério a busca de Deus. Mas foram três as pancadas que levaram, três impasses que enfrentaram, três fracassos que sofreram, até renascer e descobrir o caminho. No fim aprenderam! Vejamos as três propostas:

A primeira proposta alternativa de Abraão e Sara à promessa de Deus: Eliezer

Humanamente falando, a promessa de Deus ultrapassava as possibilidades reais do casal. Abraão já era velho e Sara não podia ter nenê. A primeira proposta de Abraão para tentar uma saída foi a de apresentar Eliezer como alternativa (Gn 15,1-6). Conforme as leis da época ele poderia adotar Eliezer como filho. O filho de Eliezer seria neto de Abraão e a promessa de poder ser pai de um povo estaria garantida. No fundo, Abraão não acreditava na promessa e achava que a realização da mesma ia ter que depender do esforço dele mesmo, da observância dele. Mas Deus disse: “Eliezer, não! Vai ter que ser filho seu!” É a primeira rasteira. Tudo voltou à estaca zero!

A segunda proposta alternativa de Abraão e Sara à promessa de Deus: Ismael

Para poder crer na promessa, Abraão devia crer em Sara, e Sara devia crer em Abraão. Não basta crer em Deus abstratamente. A promessa está ligada a pessoas concretas. “Como se pode realizar isto se não conheço homem?” (Lc 1,34) A segunda proposta foi a de apresentar Agar, escrava de Sara, para ser mãe do futuro filho (Gn 16,1-16). É que, novamente, os dois não deram conta de crer na promessa. Achavam que ela só poderia realizar-se através de Agar, isto é, através da observância do projeto que eles tinham imaginado e proposto a Deus. Nasceu Ismael, filho de Abraão e Agar. O nome Ismael significa “Deus ouviu!” Através de Ismael, filho de Abraão, o povo estaria garantido. Novamente, vem a resposta de Deus: “Ismael não. Terá que ser filho de Sara!” (Gn 17,15-19). É a segunda rasteira. E novamente, tudo voltou à estaca zero!

A terceira proposta alternativa de Abraão e Sara à promessa de Deus: Isaque

Abraão recebeu a visita de três peregrinos e os recebeu com muita hospitalidade (Gn 18,1-8). Os três diziam que Sara ia ter nenê no ano seguinte. Sara riu (Gn 18,9-15). Abraão também riu (Gn 17,17). Todos rimos, porque não acreditamos na promessa. Só acreditamos no que nós fazemos para Deus, e não no que Deus é capaz de fazer por nós. Mas finalmente, Abraão consegue crer em Sara e nasce o filho que recebe o nome de Isaque, o que significa Risada (Gn 21,107). De Deus não se ri. Falou, está falado! Podes crer! O nascimento de Isaque clareou o horizonte. Finalmente, o povo estava garantido, a bênção prometida ia poder irradiar-se para todas as nações da terra. Mas aqui acontece uma coisa muito sutil. Agora que Isaque nasceu, a esperança de Abraão tem um fundamento concreto e palpável: o filho. E imperceptivelmente o fundamento da esperança passa de Deus que oferece o dom, para o dom oferecido por Deus. E aí a palavra de Deus chega até Abraão: “Vai sacrificar o teu filho Isaque no lugar que eu te mostrar!” (Gn 22,1-2). É a terceira rasteira. Estaca zero de novo. Tudo voltou para antes do começo.

A resposta final de Abraão e Sara à promessa de Deus: a entrega total

Desta vez, Abraão não discute, não diz nada. Ele é obediência muda. Apenas age (Gn 22,3-10). Não se fica sabendo o que ele pensa. Cada leitor ou leitora preenche a parte que falta na história confrontando sua atitude com a de Abraão. No último momento, Deus manda Abraão parar. Não pode sacrificar o filho (Gn 22,11-19). Basta a obediência, interpretada pela carta aos hebreus da seguinte maneira: “Abraão acreditava que Deus é capaz de tirar vida da própria morte”, e acrescenta: “Isso é um símbolo para nós” (Hb 11,17-19). Nesse momento, Abraão alcança a justiça! (Rom 4,3; Gn 15,6) A busca de Deus e a busca da justiça se identificam plenamente!

Poderíamos continuar o comentário da carta aos hebreus dizendo: Todos nós, casados ou solteiros, todos e todas temos um Isaque. Chegará o dia em que Deus pede: Vai sacrificar o teu filho Isaque no lugar que eu te mostrar! Sacrifique esse seu Isaque, para que a esperança seja colocada em Deus e para que, a partir dela, possa nascer a prática da justiça, fruto da gratuidade total. 

2-A resistência de Moisés, resistência de todos nós

O profeta não entende tudo. Jeremias, por exemplo, ficava devendo a resposta a respeito da injustiça que se alastrava no meio do povo (Jer 12,1). Dentro do profeta, alegria e dor, esperança e angustia, o claro e o escuro convivem na mesma pessoa. A Palavra que chama constitui, ao mesmo tempo, a alegria e o drama do profeta(Jer 15,16).

A raíz desta contradição aparente está não só nas contradições da vida e da situação social, mas também no próprio Deus. A experiência de Deus transmite uma certeza que não se traduz em certezas humanas. A certeza que Deus comunica é uma só: "EU ESTOU CONTIGO!" Ela não faz a pessoa chamada ficar mais inteligente ou mais perspicaz, não muda o seu caráter, nem aumenta o grau do seu conhecimento. Ela é como a luz do sol que de repente ilumina tudo, transformando a visão do mundo, sem mudar nada. Ela ajuda o profeta a relativizar tudo em função do único absoluto que é Deus e a vida do povo, ambos fonte da sua missão.

O diálogo entre Deus e Moisés que se prolonga por vários capítulos (Ex 3,1 a 4,18) é o diálogo de todos nós com Deus, com a realidade, com a consciência que nos incomoda, com o nosso medo, com a nossa vocação. É um verdadeiro arquétipo.

No contexto deste longo diálogo, a Bíblia explica o significado do nome de Deus JHWH (Ex 3,10-15). Estes poucos versos têm uma densidade teológica muito grande. Foram compostos durante o exílio e refletem a profunda nova experiência de Deus que tiveram naqueles anos difíceis. Descrevem o ideal da fé e o ideal que nós deveríamos poder alcançar na contemplação. É nestes versículos que o autor procura explicar todo o significado e o alcance do nome JHWH.

Basicamente, o significado do antigo nome JHWH é explicado através de um recurso literário engenhoso, pelo o nome deve ser entendido como aprofundamento da primeira resposta de Deus a Moisés: Estou com você.

Eis os esquema:

Quem sou eu para ir ao faraó?

Estou com você

Qual o seu nome?

Estou que estou

Assim dirás: Estou me mandou

Assim dirás: Está me mandou

Este é o meu nome para sempre

Assim serei invocado de geração em geração

Deus não oferece dinheiro nem armas, nem diploma. Apenas diz: Vai! Estou com você! Nada mais. Não permite acesso mágico. O único acesso a Deus é a entrega total na fé na certeza de que ele está conosco. Só quando eu tiver a coragem de me entregar e de deixar Deus ser Deus na minha vida, poderei ter a certeza absoluta da presença libertadora divina na minha vida.

E Deus não quer ter outro nome, a não ser este. É o nome que ele quis assumir conosco no momento de se comprometer conosco para nos libertar do poder do Faraó.

Mas Moisés não se deu por vencido, e o diálogo continua com várias intervenções da parte de \Moisés e várias respostas da parte de Deus, sempre na mesma dimensão e rumo:

Dificuldade de Moisés: “E se não acreditarem em mim (Ex 4,1). Moisés esconde o seu medo e falta de fé atrás da pretensa falta de fé do povo: “O povo não vai acreditar em mim!” Deus faz ele realizar três sinais milagrosos: mudar bastão em serpente (Ex 4,2-5), fazer a mão ficar cheia de lepra (Ex 4,6-8) e mudar água do rio em sangue (Ex 4,9).

Mas Moisés inventa outra dificuldade: “Meu Senhor, eu não tenho facilidade para falar!” (Ex 4,10). Deus desfaz o argumento, pois ele é o criador da boca dos homens (Ex 4,11-12).

Moisés insiste: “Não meu, senhor, mande a quem quiser!” (Ex 4,13). Ou seja, mande a quem quiser, mas não a mim. Aqui Moisés falou claro, Deixou de esconder-se atrás de pretextos e refúgios e disse o que estava no fundo do seu coragem: “Não quero! Mande um outro!” E Deus também falou claro expressando novamente a sua vontade com relação à missão de Moisés: E você vai! Pode levar Aarão com você, que tem língua boa para falar!” (Ex 4,14-17).

Moisés aceitou a vontade de Deus, foi para casa e disse ao sogro: “Vou voltar para o Egito para ver se meus irmãos ainda vivem”. O sogro respondeu: “Vai em paz!” (Ex 4,18).

O que teria acontecido se Moisés não tivesse ido? Talvez tivesse sido um bom executivo do faraó, um devoto fiel do Deus Rá, divindade suprema do sistema piramidal. Talvez tivesse recebido, depois da sua morte, uma pequena pirâmide como sepultura e os arqueólogos do século XXI talvez o descobrissem, e nós não estaríamos aqui. A história teria tomado um outro rumo.