Frei Chalmers Joseph, O. Carm. Ex- Prior Geral da Ordem do Carmo.

             Os eremitas que foram para o Monte Carmelo deixaram seus lares na Europa por várias razões. Talvez quisessem experimentar a emoção das Cruzadas ou estivessem se penitenciando por algum pecado. Seja qual for a razão, decidiram fazer do Monte Carmelo seu lar para viver em obséquio de Jesus Cristo como eremitas em santa penitência.

            A Europa estava agitada no final do século XII e início do século XIII. Era grande o número de movimentos religiosos. Hoje não usamos mais o termo “fuga mundi” que os eremitas usaram. Não gostamos da ideia de que talvez estejamos fugindo do mundo, embora algumas vezes somos acusados de fazê-lo. Contudo, no tempo dos eremitas, “fuga mundi” não tinha a conotação negativa que tem hoje. Os primeiros monges e eremitas deixaram o mundo para ir ao deserto, conhecido como a fortaleza dos demônios. Eles foram para o deserto não para ter uma vida calma e tranqüila, longe dos problemas do mundo, mas para lutar contra o Maligno que “rodeia por aí como um leão que ruge, espreitando a quem devorar” (1Pd 5,8; Regra 18). Para tomar parte nessa batalha, eles precisavam de fortes armaduras. É por isso que nossa Regra pede que nos revistamos da armadura de Deus para que possamos resistir às emboscadas dos inimigos (Regra 18).

            Os eremitas seguiram esse modo de vida em obséquio de Jesus Cristo porque queriam levar luz às trevas e vencer o Maligno. Eles estavam respondendo ao chamado de Deus. Suas decisões moldaram profundamente nossas vidas e geraram a grande Família Carmelitana presente hoje em cada continente. Imaginamos a vida espiritual de forma diferente e enfrentamos problemas diferentes de acordo com o lugar em que vivemos e servimos, mas nossa vocação é fundamentalmente a mesma como descreve nossa Regra. Devemos assumir os valores carmelitanos fundamentais que estão em nossa Regra e que plenificam a história de nossa Ordem e as vidas de tantos irmãos e irmãs carmelitas, especialmente nossos santos e grandes teólogos. Devemos enfrentar nosso mundo que, às vezes, é muito diferente, com esses valores carmelitanos fundamentais. Nossas Constituições exprimem o que a Ordem considera como valores carmelitanos fundamentais para nós hoje.

            Nas Constituições, a Ordem diz: “Os carmelitas vivem sua vida em obséquio de Jesus Cristo com o compromisso de buscar a face do Deus vivo (a dimensão contemplativa da vida), pela fraternidade e pelo serviço no meio do povo” (Const. 14). As Constituições continuam dizendo que esses valores são ligados pela experiência do deserto, que é um modo de descrever a contemplação. Nossa missão na Igreja é promover a busca por Deus e por uma vida de oração (Const. 95). Em nosso seguimento de Cristo hoje, deixamos nossas vidas serem moldadas pela Palavra de Deus e nos inspiramos nos exemplos de Nossa Senhora e do Profeta Elias.

            Devemos cooperar com Jesus Cristo em seu trabalho de conduzir os seres humanos para o Reino de Deus. Fazemos isso através dos diferentes ministérios nos quais estamos envolvidos. O grande trabalho de Cristo é proclamar a Boa Nova de Deus através de sua pregação mas, acima de tudo, por sua morte e ressurreição. Ele traz salvação, que é a transformação dos seres humanos na imagem e semelhança de Deus e a transformação de nosso mundo de acordo com a vontade de Deus. Jesus disse ao povo na sinagoga de Nazaré que veio proclamar a Boa Nova aos pobres (Lc 4,16-21). Os profetas tinham diversas formas de visualizar a era messiânica de paz e de justiça quando a Boa Nova seria realizada. Isaías profetizou,

“Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes.

Sobre ele repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh:

no temor de Iahweh estará a sua inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer.

Antes, julgará os fracos com justiça, com eqüidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra. Ele ferirá a terra com o bastão de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio.

A justiça será o cinto dos seus lombos e a fidelidade, o cinto dos seus rins.

Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará.

A vaca e o urso pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi.

A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da víbora.

Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte, porque a terra ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas enchem o mar” (Is 11,1-9).

            Somos chamados a fazer parte da realização do plano de Deus para nosso mundo. Para sermos colaboradores com Cristo, devemos permitir que a graça de Deus transforme nossos corações. Transformação não é apenas uma mudança externa de um ou dois detalhes, mas uma mudança profunda de como nos relacionamos com os outros, com o mundo e com Deus. Não podemos participar sem passar por um processo de transformação em nós mesmos.

            O RIVC fala vigorosamente sobre esse processo de transformação que é tanto individual como coletivo:

            “Através dessa transformação gradual e contínua em Cristo, que é realizada em nós pelo Espírito, Deus nos conduz a ele numa jornada interior que nos leva das margens dispersivas da vida ao âmago de nosso ser onde ele mora e nos une a ele.

            Isso requer um esforço constante, radical e perpétuo, pelo qual, inspirados pela graça de Deus, começamos a pensar, julgar e reorganizar nossas vidas de acordo com a santidade e bondade de Deus como nos é revelado e extravasado em abundância no Filho.

            Esse processo não é linear nem uniforme. Envolve momentos críticos, crises no crescimento e no amadurecimento, estágios onde devemos fazer novas escolhas – especialmente quando temos que renovar nossa opção por Cristo. Tudo isso faz parte da purificação de nossos espíritos no nível mais profundo pelo qual podemos nos ajustar a Deus.

            O processo interior que leva ao desenvolvimento da dimensão contemplativa nos ajuda a adquirir uma atitude de abertura à presença de Deus na vida, nos ensina a ver o mundo com os olhos de Deus e nos inspira a buscar, reconhecer, amar e servir a Deus naqueles ao nosso redor” (RIVC, 24).

            Todo esse trabalho de transformação pessoal e comunitária está acontecendo num mundo cheio de problemas e de injustiça. A viagem espiritual não é uma fuga do mundo no sentido negativo, mas um retirada de certos aspectos da vida – casamento, família, carreira, etc., para concentrar nossas forças limitadas na mesma guerra em que os primeiros carmelitas estavam envolvidos. Devemos nos envolver completamente no mundo para cooperar com Cristo na sua transformação.

            Os seres humanos e as estruturas humanas trazem muitos problemas ao nosso mundo. A história nos ensina que se uma guerra termina com uma paz onde um dos lados continua oprimido, ela simplesmente deixa os alicerces para uma próxima guerra. Hoje vemos muitas guerras que têm suas raízes em injustiças cometidas a centenas de anos atrás. Não podemos resolver os problemas de nosso mundo. E também não acho que é isso que se espera de nós. No entanto, é possível que estejamos contribuindo para o tumulto, fazendo parte do problema e não da solução. Devemos permitir que o Evangelho questione nossos valores e nossas razões. Nossos valores são realmente os valores do Evangelho? Nossos valores são os mesmos valores carmelitanos fundamentais? Nossos motivos são puros? Olhar para nós mesmos como realmente somos pode ser um processo muito doloroso.

            Para sermos realmente parte da solução, devemos entrar ativamente no processo de transformação pelo qual Deus transforma nosso mundo, mas isso envolve também nossa transformação pessoal. Não podemos ter um sem o outro. Portanto, como os primeiros eremitas carmelitanos, devemos ir para o deserto enfrentar os demônios que vivem lá. Os demônios a que me refiro são aqueles que estão dentro do coração humano. O deserto não é necessariamente um lugar em especial, mas uma situação pela qual Deus nos fala ao coração e na qual não temos nossos meios comuns de fuga. As situações do deserto nos colocam face a face com quem somos. Somos bons porque Deus nos criou, mas somos marcados pela Queda – a condição humana e nosso pecado pessoal. Não é suficiente que nos arrependamos de nossos pecados. As raízes devem ser arrancadas, isto é, aquilo que nos levou a agir de determinada forma. Nossos tempos são marcados por uma perda do sentido do pecado. Então, em vez de buscar as causas de nossos pecados, sejam elas quais forem, poderíamos buscar o que nos motiva em toda nossa vida. Caritas Christi urget nos? Realmente? Somos motivados por outros motivos menos elevados? Olhe para o que você gosta ou não; olhe para suas emoções fortes – sua raiva, seus sentimentos de rejeição e assim por diante. Tente dar nome a algum deles e iluminá-los. De onde eles vêem? Quais são as causas dessas emoções e do comportamento que às vezes se baseia nelas?

            Depois de um Capítulo, um Provincial e um Conselho enfrentam um grande número de desafios. Eles devem seguir o mandato do Capítulo mas devem fazê-lo dentro dos limites da realidade da Província. Algumas vezes no Capítulo, esta realidade não é levada em conta e as pessoas são levadas pela euforia. O Provincial e o Conselho devem adaptar as pessoas aos serviços. Eles devem enfrentar a realidade da Província que algumas vezes não é conhecida publicamente. Irmão X não pode viver com Irmão Y; Irmão Z não pode viver numa comunidade pequena; Irmão A pode viver em qualquer comunidade por no máximo três anos, mas depois deve ser transferido; Irmão B., não o famoso citado na Regra mas o atual com todas as suas limitações, vai a qualquer lugar dar o melhor de si. Toda Província é uma mistura de pessoas com diferentes dons e limitações. O Provincial e os Conselheiros também têm seus problemas, o que limita a visão e a compreensão das questões que têm diante de si.

            Temos uma vocação comum como carmelitas. Estamos nisso juntos. Devemos nos apoiar mutuamente. Se vamos nos ajudar mutuamente, cada um de nós deve ir para o deserto e enfrentar seus próprios demônios sejam eles quais forem, e serão diferentes para cada um de nós. Se não caminharmos no deserto voluntariamente, ficaremos parados em algum ponto de nossas vidas e isso pode ser muito mais difícil. Protegidos pela armadura dada por Deus, precisamos lutar contra tudo que é falso dentro de nós e tudo que soma aos problemas do mundo. A falsidade dentro de nós pode ser muito sutil e se esconder sob a aparência da religiosidade, de modo que não é revelada e vista como é.

            Assim como os eremitas deixaram seus lares por muitas razões, podemos dizer o mesmo de nós. Desejávamos nos tornar carmelitas mas não compreendemos plenamente o que implicava esta escolha. Isso ficou claro ao nos depararmos com cada estágio de nosso desenvolvimento humano e religioso. A jornada carmelitana é uma jornada para a transformação. Ao percorrermos este caminho, entramos conscientemente num processo de purificação de nossos motivos que se escondem por trás do que fazemos e do que dizemos diariamente.

            A oração é essencial para essa jornada. Como a RIVC diz:“ Na oração nos abrimos para Deus que, por sua ação, gradualmente nos transforma através de todos os grandes e pequenos eventos de nossas vidas. Esse processo de transformação nos permite entrar e manter relacionamentos fraternos autênticos; nos torna dispostos a servir, capazes de compaixão e de solidariedade, e nos dá a capacidade de colocar diante do Pai as aspirações, angústias, esperanças e clamores do povo.

            A fraternidade é o campo de provas da autenticidade da transformação que está acontecendo dentro de nós. Descobrimos que somos irmãos viajando para o Pai, partilhando os dons do Espírito e apoiando uns aos outros no cansaço da jornada” (RIVC, 23).