Pe. Jaldemir Vitório SJ

Introdução

             A cena de Elias, no monte Horeb, parece destoar do conjunto da tradição em torno do profeta. Teve coragem de profetizar, contrariando a casa real (1Rs 17,1-17). No estrangeiro, mostrou-se solidário com uma pobre viúva, à beira da morte por inanição (1Rs 17,8-24). A cena no monte Carmelo descreve-o com uma impavidez invejável, a ponto de, sozinho, desafiar os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e, no fim, passar todos ao fio da espada (1Rs 18,20-46). O injustiçado Nabot encontrou em Elias um defensor destemido, cujas palavras desmascararam a má conduta do rei e de sua mulher e anunciaram a terrível punição pela impiedade (1Rs 21,1-29). Falou duro contra o rei doente que, ao invés de confiar em Javé, preferiu consultar Beelzebub (2Rs 1,1-17). A carreira gloriosa de Elias foi concluída com o arrebatamento para o céu, levado num “carro de fogo e cavalos de fogo” (2Rs 2,1-28).

            1Rs 19,1-21 apresenta o profeta de forma muito diferente. “Desespero profundo, expressão de fracasso, e rejeição do ofício profético são os temas preponderantes” (COGAN, 2001, p. 456). Tem-se a impressão de terem fracassado os esforços para fazer frente à disseminação da idolatria em Israel. A fuga desponta como a única saída. É como se estivesse fugindo da luta. Javé, porém, fá-lo tomar o caminho de volta, para o “lugar” de onde não deveria ter saído.

            Este artigo pretende fazer uma leitura de 1Rs 19, levando em consideração o conjunto das tradições em torno do profeta Elias, sem se deter nas várias questões de crítica textual, de unidade, de relação com o capítulo precedente, de historicidade, de significado de certas palavras e expressões, evidentes no texto. O sentido do conjunto é claro, apesar dos entraves pontuais no texto hebraico[1]. No correr da leitura, será explicitado o que, em análise narrativa, é chamado de “ação transformadora”. Ou seja, o caminho percorrido pela ação desde a situação inicial até o seu desfecho (MARGUERAT-BOURQUIN, 2009, p. 59). O percurso da leitura mostrará como o profeta Elias, optando por fugir, foi para o lugar errado. Javé fá-lo voltar para o lugar onde deveria estar, pois, para um profeta verdadeiro, a fuga jamais será solução. Para ele, vale o que diz uma música brasileira bem conhecida: “Nada temer, senão o correr da luta!” O lugar do profeta é, sempre, o lugar do conflito. A fuga, mesmo para um lugar sacratíssimo – “o monte de Deus” – leva-lo-á ao lugar equivocado. É aí que ouvirá a ordem peremptória de Javé: “Vai e volta por teu caminho!” (v. 15a). Em outras palavras: “Volta para o teu lugar”.

1-O profeta Elias na mira da rainha Jezabel (vv. 1-2)

A narração inicia-se aludindo ao conflito do profeta com a casa real de Israel. O rei Acab informa à rainha Jezabel a ação violenta de Elias contra os profetas de Baal, como havia eliminado todos eles, matando-os à espada (1Rs 19,1; cf. 18,40).

Jezabel era estrangeira, filha do rei dos sidônios. Deve ter vindo para Israel no contexto da aliança entre Omri e Etbaal, seu pai. Omri deu-a em casamento a seu filho Acab (1Rs 16,31a). Era costume dar uma filha para o rei com quem se estabelecia aliança, certamente, para estreitar os laços entre os contratantes[2]. O casamento de Acab com Jezabel estreitou os laços entre Israel e Sidon.

Jezabel era devota adoradora de seu deus – Baal – e, por todos os meios, tentou implantar sua religião no reino de Israel. Acab, que deveria ser adorador de Javé, era de personalidade pusilânime. E se deixou manipular pela esposa, incapaz de se impor. Antes, “deu u’a mãozinha” a Jezabel para propagar o culto baalista. O baalismo em Israel teve grande sucesso, durante seu reinado. Por isto se diz dele, logo na primeira referência que se lhe faz na Obra Historiográfica Deuteronomista (Js-2Rs), que “foi prestar culto a Baal, adorando-o. Pôs um altar de Baal no templo de Baal que tinha construído em Samaria, ergueu um poste idolátrico e cometeu ainda outros pecados, a ponto de irritar o Senhor, Deus de Israel, mais do que todos os reis de Israel que o antecederam” (1Rs 16,31b-33). Os adoradores de Javé vivem uma situação difícil. Jezabel mandara eliminar os profetas de Javé. Um grupo sobreviveu, protegido por Obadias, que “os escondera em grupos de cinquenta em duas cavernas, alimentando-os com pão e água” (1Rs 18,4.13). Já “os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas de Asera” gozavam da proteção real, comendo à mesa de Jezabel (1Rs 18,19).

            O profeta Elias desponta como defensor impávido da fé em Javé, disposto a tudo. No confronto com os profetas de Baal, no Monte Carmelo, sai vencedor. E manda prender os profetas de Baal, sem deixar escapar nenhum; “fê-los descer à torrente do Qishon, onde os degolou” (1Rs 18,40). Esta notícia chega a Jezabel por intermédio de Acab. A rainha é informada que Elias “tinha passado ao fio da espada todos os profetas de Baal” (1Rs 19,1). Desencadeia-se, então, contra ele uma cólera sem tamanho. A rainha toma a decisão de tirar-lhe a vida, mandando avisar-lhe por um mensageiro: “Os deuses me cumulem de castigos, se amanhã, a esta hora, eu não tiver feito contigo o mesmo que fizeste com a vida desses profetas” (1Rs 19,2). Os dias do profeta estavam contados. A rainha, de certa forma, dá-lhe tempo para fugir, pois não manda prendê-lo, imediatamente, e, sim, envia um mensageiro para comunicar-lhe sua intenção. É uma forma de dizer-lhe para “dar o fora”[3]. O profeta dispunha de um dia – “amanhã a esta hora” (v. 2) – para tomar as providências.

2-A fuga: uma forma de escapar ao conflito (vv. 3-5a)

Elias, cuja valentia fora demonstrada no enfrentamento com os profetas de Baal, passados ao fio da espada, mostra-se, agora, cheio de medo em face da ameaça de Jezabel. “Medo por sua segurança pessoal acompanha o profeta ao longo do presente episódio” (COGAN, 2001, p. 450). Do norte, vai na direção sul, chegando a Bersabeia, que está na extremidade sul de Judá, nos limites entre a terra habitada e cultivada e o deserto. “De Dan a Bersabeia” era a expressão para se referir aos limites da terra de Israel (Jz 20,1). Portanto, fugiu para o lugar mais longe possível. O lugar recorda Abraão, em suas andanças, num litígio com certo Abimelek, por questões de água para os rebanhos (Gn 21,22-34). Recorda, também, Isaac em litígio com o mesmo personagem, por igual motivo (Gn 26,23-33). Ou seja, o profeta foge para bem longe, onde os patriarcas perambularam. O sentido de suas andanças, porém, era muito distinto. “Sua viagem no deserto tinha, apenas, o significado de fuga e de retorno à não-existência” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 15).

O próximo passo consistiu em se embrenhar sozinho, pelo deserto, depois de deixar para trás o servo que trouxera consigo[4]. O “caminho de um dia” permitiu-lhe ir bem longe e ficar na mais completa solidão. O deserto era procurado por fugitivos e foragidos pela dificuldade de alguém ser encontrado, por não deixar rastros. Sem saber para onde ir, o risco de os perseguidores se perderem era grande. Temiam entrar deserto a dentro, sem rumo certo. Agar foge para o deserto, temendo as humilhações de Sara (Gn 16,6-7).  Os israelitas, fugitivos da opressão egípcia, rumaram na direção do deserto para escapar da perseguição. Igualmente Davi, tentando livrar-se da fúria de Saul (1Sm 23,14).

            Ocorre, então, algo que parece ir além do medo. Uma forma de depressão? Em todo caso, Elias senta-se à sombra de uma árvore, pedindo a morte, por não encontrar sentido para a vida. “Agora basta, Senhor! Tira a minha vida, pois não sou melhor do que meus pais” (v.4)[5]. “Elias não se vê mais como portador de uma relação especial com YHWH e, em desespero interior, pede para morrer, como a acontece com todo ser humano” (COGAN, 2001, p. 451). Ou, então, “o pânico que se abateu sobre ele, quando Jezabel fez conhecer a ameaça contra sua vida, fez-lhe murchar a auto-imagem inflada. Ele sempre se teve como sui generis e não pode viver com a consciência de que é um outro homem, sobrevinda ao longo da fuga” (ROBINSON, 1991, p. 517). O lutador incansável pela causa de Javé perde a motivação para a luta. Dá a causa por perdida! Não vale mais a pena lutar contra a maré. É melhor morrer do que ver o baalismo suplantar a fé dos pais. O profeta dá a impressão de não ter mais forças nem motivos para combater por seu Deus. Morrer seria, para ele, a solução. Antes era Jezabel quem estava decidida a pôr fim à vida do profeta (v. 2). Agora, o profeta, por si mesmo, não vê mais motivo para viver. “A perseguição de Jezabel lançou-o numa profunda noite de dúvidas espirituais e ele renuncia à missão e à própria vida. Esta condição interior do profeta não poderia ter sido melhor expressa do que na fuga para o deserto, lugar sem veredas e direções, o reino da morte” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 14).

            “Deitando-se no chão, adormeceu à sombra do junípero” (v. 5a) é a alusão a uma morte simbólica. O sono de Elias é o sono da morte, a qual ele espera, colocando-se na posição de morte, de forma a antecipar o desfecho desejado. Ele já se considera morto!

            Elias, aqui, é a figura do batalhador cansado, frustrado, decepcionado, que entrega os pontos e se recusa a continuar lutando por uma causa, na qual se jogara de corpo e alma. É a imagem do batalhador deprimido, que decidiu a própria morte, longe do campo de batalha. É a imagem do batalhador que deixou para trás a causa de seu Deus, a luta pelo direito e pela justiça em favor dos oprimidos e injustiçados. É a imagem do batalhador desiludido, em cujo horizonte desponta, apenas, a morte.

3-O encontro com Deus e a consciência de um equívoco (vv. 5b-14)

Enquanto o profeta espera a morte, na mais total abulia, envolvido por um profundo sono, eis que uma espécie de “ressurreição” começa a se processar em sua vida. No início da narração, fora abordado por um mensageiro (mal°¹k) de Jezabel, anunciando-lhe a condenação à morte. Agora, entra em cena o “mensageiro de Javé”, para chamar o profeta à vida. Tocou-o e ordenou-lhe: “Levanta-te e come!” (v. 5b). A decisão do profeta é, assim, contrariada. Pode-se suspeitar que não lhe cabe dar por terminada a missão recebida de Javé. Urge pôr-se de pé e retomá-la, com novo vigor.

A força ser-lhe-ia dada do alto. Daí ter percebido estar perto de sua cabeça um pão cozido sobre as brasas e uma bilha com água (v. 6). No passado, Elias já havido sido alimentado de forma misteriosa, quando, temendo o rei Acab, fora se esconder na torrente de Karit, a leste do Jordão. “Os corvos traziam-lhe pão e carne, tanto de manhã quanto de tarde, e ele bebia na torrente” (1Rs 17,6; cf. 17,15-16). A proteção divina de outrora se repetia no presente.

Ele que pensara estar solitário no deserto e, aí, poder morrer em paz, na verdade, estava sob o olhar atento de quem lhe pusera na mão uma bandeira: lutar pela fé! E Deus contrariava a opção do profeta pela morte. Queria-o, sim, vivo e aguerrido! Donde ter mandado o mensageiro para despertá-lo, recuperar-lhe as forças e mostrar-lhe o caminho de volta. Quando o profeta parecia querer esquecer Javé e que Javé se esquecesse dele, mais que nunca está sob o olhar divino. Javé não se esquece que o profeta é seu servidor.

A primeira reação do profeta é decepcionante. “Comeu e bebeu, e tornou a deitar-se” (v. 6b). Trata-se de uma atitude contraditória. Se, deveras, estava decidido a morrer, por que comeu e bebeu? Não seria esta uma forma de prolongar a agonia? Afinal, voltou a deitar-se, insistindo na decisão anterior pela morte. Neste caso, teria sido mais conveniente não comer e nem beber e, assim, garantir a morte por inanição, já que não dá mostras de querer tirar a vida com as próprias mãos. Satisfeita a necessidade física, a vida seria prolongada de maneira inútil. Da parte de Javé, a oferta de comida pode significar que não deseja a morte de seu profeta. Antes, que esteja em boas disposições para levar adiante a missão. Todavia, alimentado, o profeta voltou a dormir. Logo, não entendeu a intenção divina.

Entretanto, o mensageiro de Javé não o deixou em paz. Veio uma segunda vez, tocou-o e lhe ordenou levantar-se e comer, “porque o caminho será muito longo para ti” (v. 7). De que caminho se trata, senão o caminho de volta para o campo de batalha, lugar de onde não deveria ter saído? Com toda certeza, não se trata do caminho na direção do Horeb, para onde seguirá[6]. O mensageiro de Javé traz-lhe à consciência a missão de profeta e o lugar onde lhe cabe estar no exercício da missão. A fuga é uma atitude incompatível para quem se colocou nas mãos de Javé e aceitou tornar-se seu colaborador.

O profeta obedeceu à ordem do mensageiro. “Levantou-se, comeu e bebeu” (v. 8a). É um pequeno sinal de superação da crise. Poderia ter, simplesmente, se recusado a obedecer e continuar no sono, à espera da morte. Ou, então, repetido a atitude contraditória de comer, beber e voltar a dormir.

“Com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (v. 8b). A segunda refeição teve o efeito de recuperar o ânimo do profeta, a ponto de lhe dar forças para uma longa caminhada. Só que, ao invés de voltar para a Samaria e enfrentar a invasão baalista, segue no rumo da montanha onde Moisés falou com Deus e recebeu as tábuas da Lei (Dt 4,10.15; 5,2; 9,8; 18,16; 28,69)[7]. O Horeb – Sinai – é carregado de simbolismo para a fé de Israel. Ali Deus comunicou suas leis e mandamentos ao povo, por intermédio de Moisés, que permaneceu no monte durante “quarenta dias e quarenta noites” (Ex 24,18; 34,28). Por isso, tornou-se o lugar por excelência do encontro com Deus. Apesar de tudo isto, o profeta estava no lugar errado. Caminhar na direção do lugar sagrado, neste caso, correspondia a caminhar na contramão de Deus. O mensageiro de Javé já havia falado da “viagem de volta para Canaã, onde Elias deveria estar” (ROBINSON, 1991, p. 518-519). “Não existe nenhuma motivação religiosa em sua fuga... De fato, este é o único momento no ciclo de Elias em que o profeta faz uma viagem sem ser por ordem de Deus, mas porque é ele quem o quer. É o único momento em que age, independentemente, da palavra de Deus” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 13). Ele deseja mesmo é salvar a vida, escolhendo um lugar que lhe parecia seguro. Afinal, “Elias não foge só de Jezabel, mas também da sua missão profética e de sua responsabilidade” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 14).

Os “quarenta dias e quarenta noites” de caminhada evocam a caminhada de Israel pelo deserto ao longo de quarenta anos (Nm 14,32-34; Dt 8,2.4). Porém, na direção contrária: o Horeb esteve no início da marcha do povo pelo deserto; o profeta faz a caminhada pelo deserto, voltando ao Horeb. É como se pretendesse defrontar-se com quem lhe havia confiado uma missão impossível de ser levada adiante. Para quê? Para pedir explicação e protestar? Para se lamentar e declarar ter chegado aos limites das forças e dar por concluída a missão? Para ouvir palavras de consolo? Afinal, qual o motivo da peregrinação ao “monte de Deus”? São muitas as suposições.

Os traços da depressão de Elias permanecem ao chegar ao Horeb. Isto transparece no fato de ter entrado numa caverna e passado a noite (v. 9a). A caverna simboliza o túmulo: lugar fechado e sem claridade; na escuridão, a vida não pode se desenvolver. A indicação temporal – noite – aponta, também, para o estado de espírito do profeta. Tudo nele é escuridão, trevas, incompreensão!

Deus questiona o profeta, abordando-o no fundo de sua abulia. E o faz manifestando a surpresa de o profeta estar, ali, quando deveria estar alhures, defendendo a fé. “Que fazes aqui, Elias?” (v. 9b)[8]. É como se estivesse no lugar errado, e Deus quisesse saber o motivo, pois deveria estar em Israel, combatendo o baalismo com as consequências nefastas para o povo. Ele, jamais, confessará o real motivo da fuga: “sentir haver falido como profeta” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 16). Tanto esforço empregado deu em nada! O povo teria virado as costas para Javé, rompendo a Aliança. É como se a história de Israel, como povo de Javé tivesse chegado ao fim. Isto explica o desespero do profeta.

O profeta não se dá ao trabalho de deixar a caverna para responder a Deus. A resposta vem lá de dentro, ou seja, das entranhas de sua confusão existencial e de sua determinação de deixar de lado a missão. A resposta – uma forma de lamentação (v. 10) – não é das melhores. Começa declarando uma fidelidade exemplar a Javé – “Estou ardendo de zelo pelo Senhor, Deus dos exércitos”. Em seguida, relata a situação de Israel, que será, posteriormente, desmentida por Javé – “Os israelitas abandonaram tua aliança, demoliram teus altares e mataram à espada os teus profetas”. Deus dirá que muitos não se curvaram ao culto baalista (v. 18). O profeta ficou cego para se dar conta dos fatos: no Carmelo, o povo confessou fidelidade a Javé – “Todo o povo o presenciou; prostrou-se com o rosto em terra, exclamando: ‘É Javé que é Deus! É Javé que é Deus!’” (1Rs 18,39); o altar do Carmelo fora restaurado (1Rs 18,30) e muitos profetas de Javé foram salvos e protegidos por Abdias (1Rs 18,3-4). Havia, pois, sinais de permanência da fé javista em Israel. Elias estava enganado.

Elias omite-se de mencionar a raiz de tudo isto e os responsáveis pela baalização do reino do Norte e da matança dos profetas, ou seja, Jezabel com o beneplácito de Acab. Por que o profeta “não dá nome aos bois”? Por que generaliza, quando era possível ser mais objetivo? “Só eu escapei” é o exagero de quem perdeu o senso da realidade e se tornou incapaz de perceber o que se passa a seu redor[9]. Ele se esquece ter eliminado, sem dó nem piedade, os profetas de Baal (v. 1; cf. 1Rs 18,40). Ou, então, é a tal ponto individualista, que não percebe outras pessoas lutando pela mesma causa. Ou é míope o suficiente para não tomar consciência de que seu protagonismo carece de base. “Mas agora querem matar-me também” é uma informação correta, embora exagerada. De fato, Jezabel decretou-lhe a morte, mas o braço de seu poder não era suficientemente longo para chegar até uma caverna no monte Horeb. Não precisava ir tão longe para se esconder da perseguição.

Nada do que disse Elias dava conta de responder à pergunta de Javé – “Que fazes aqui?” Explicou, mas sem convencer. Os motivos verdadeiros foram omitidos. Era um medroso, depressivo e individualista, incapaz de articular uma reação contra Jezabel, contando com as mediações disponíveis. Num rompante de valentia, eliminara os profetas de Baal. Entretanto, quando viu as consequências de sua bravata, deu marcha-ré. O super-homem fraquejou e mostrou quem, de fato, era. Portanto, a resposta carregada de piedade e de fidelidade a Javé encobria a verdade. Uma teologia forte – Javé é o Deus dos exércitos, forte e poderoso – está associada a uma antropologia fraca – Elias é um ser humano que perdeu o gosto pela vida.

Javé não se dá por convencido. A história do “zelo por Javé” soa como mal contada. Tem-se a impressão de que o profeta esteja censurando Javé por não se engajar na sua própria causa. É como se o profeta tivesse se consumido por causa de Javé, enquanto este estava na mais total tranquilidade. As palavras do profeta, então, caem no esquecimento, não são referidas, nem, tampouco, merecem o menor comentário por parte de Javé. É como se carecessem de valor. Javé deixa-as de lado, pois não lhe interessam.

O profeta é, então, confrontado com uma ordem peremptória – “Sai e permanece sobre o monte diante do Senhor!” (v. 11a). No espírito da narração, a ordem pode ser reformulada de variadas formas: “Deixe de lado esta depressão!” “Supere o pessimismo!” “Pare de pensar em morrer!” “Basta de ser medroso e ficar fugindo!” “Encare a realidade!” Mais do que sair de um lugar físico – a caverna –, Elias é instado a sair de si mesmo, do mundo interior no qual se enclausurara.

O profeta recebe a ordem de pôr-se sobre o “monte”, diante de Javé (v. 11b). O monte, ao contrário da caverna, é o lugar onde se abrem perspectivas e se descortinam horizontes. Era o lugar onde devia estar, se se dispusesse a mirar o futuro e a cultivar esperanças. A ordem divina – “Põe-te neste monte!” – pode, igualmente, ser parafraseada: “Aprenda a olhar a realidade de maneira correta!” “Considere as coisas com visão larga!” “Veja como o horizonte vai além do seu nariz!” “Observe quantas possibilidades existem a seu redor!” “Tome consciência de que nem tudo está perdido!”

No alto do monte, o profeta será instruído, pessoalmente, por Javé. Este poderia ter-se servido de um intermediário, como fizera ao mandar o mensageiro para acordar o profeta do sono letárgico (vv. 5-7). Pelo contrário, se dará ao trabalho de abrir os olhos do profeta e fazê-lo voltar para o lugar de onde jamais deveria ter saído. Um detalhe: o profeta não obedece à ordem de Javé. Isto acontecerá um pouco mais tarde. Os fatos seguintes encontra-lo-ão, ainda, entocado.

Foi dada ao profeta a chance de fazer uma experiência singular de contato com Javé. A afirmação – “Então o Senhor passou” (v. 11c) – alude à presença divina, misteriosa e inabarcável. O profeta foi ao encontro de Javé, e este não se furtou em vir-lhe ao encontro. Porém, encontrou-o arredio e renitente em abrir mão das posturas equivocadas. Não quer sair da caverna!

Acontece, então, uma sucessão de fenômenos ligados às teofanias, cujo pano de fundo é a manifestação de Deus associada às forças cósmicas[10]. São sinais indicadores da manifestação de Javé. Tem-se a impressão de aludirem à experiência de Moisés, no Sinai (Ex 19,16-18; 20,18)[11]. Em primeiro lugar, “um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos” (v. 11b). A simultaneidade do furacão com a passagem de Javé não implica associação entre eles. Quem afirma é o narrador. Elias está, ainda, escondido na caverna. Quiçá percebesse a ação do vento impetuoso, sem se dar ao trabalho de ir ver o que se passava. O estado psicológico do profeta não dava lugar para curiosidade. Entretanto, “o Senhor não estava no vento”. O vento foi sucedido por um terremoto. O narrador observa que “o Senhor não estava no terremoto” (v. 11c). O abalo sísmico, portanto, não apontava para a presença de Javé. Em seguida, irrompeu um fogo. Pela terceira vez, o narrador declara que “o Senhor também não estava no fogo” (v. 12a). É possível suspeitar que o profeta esperasse uma manifestação espetacular de Javé dos exércitos, cujo zelo o consumia. Porém, a expectativa ficou frustrada. A três manifestações espantosas da natureza nada tinham a ver com a presença de Deus e sua manifestação. Javé não era o deus terrível e castigador, como o profeta imaginava.

Uma “voz mansa e delicada” (v. 12 b) sucede ao fogo[12]. Agora é uma manifestação pessoal, uma voz (qôl), e não uma manifestação impessoal, como nas três anteriores. O vocábulo voz tem a ver com diálogo, relação interpessoal, comunicação. No caso, trata-se de uma voz “mansa e delicada”, ou seja, sem estridência nem, tampouco, imposição. Aí, sim, é possível conversar. Javé manifesta-se num quase silêncio, onde sua presença só é perceptível para quem se dispõe a apurar os ouvidos e escutar com muita atenção. A experiência de efeitos dramáticos é irrelevante. Importante mesmo é a “voz”, à qual o profeta deverá escutar e colocar em prática, como fiel servidor de Javé.

Só então “ouvindo isto, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta. Ouviu, então, uma voz...” (v. 13a). É possível se perguntar por que o profeta cobriu o rosto se nada viu, tendo apenas ouvindo uma vozinha? Elias não havia obedecido à ordem de se colocar no monte, diante do Senhor (v. 11). Agora, simplesmente, sai para fora da caverna. O ato de cobrir o rosto com a capa é uma atitude cautelar, pois é impossível contemplar a face de Javé e permanecer vivo (Ex 33,22-23; Jz 6,22; 13,2-22)[13]. Ele compreende estar na presença de Javé. Agora, sim, com ares de estar disposto a dialogar com Javé, escutar-lhe a voz.

As palavras de Javé – “Que fazes aqui, Elias” (v. 13b) – e a resposta do profeta são a exata repetição dos versículos 9b-10. Na primeira ocorrência, Deus lhe dá uma ordem, que não é obedecida, como se o profeta estivesse esperando a confirmação da presença de Javé, que não estava nem no vento, nem no terremoto e nem no fogo e, sim, na voz mansa e suave. Certificado de estar na presença de Javé, agora, sim, apresenta-se para o diálogo e é, novamente, questionado a respeito do motivo de estar ali, no Horeb, quando deveria estar alhures. A insistência num motivo, com aparência de piedade – “Estou ardendo de zelo pelo Senhor, Deus dos exércitos” (v. 14a) – é insuficiente para comover Javé e levá-lo a dar razão ao profeta. “A repetição da própria justificação para fazer a viagem revela a inflexibilidade e a falta de disposição para mudar o modo de pensar” (ROBINSON, 1991, p. 523). Elias está no lugar equivocado e Javé não vai lhe passar a mão na cabeça, sendo condescendente com o servidor infiel. Se, de fato, assumiu a causa de Javé com tanta convicção, não há porque fugir, nem, tampouco, tornar-se abúlico e se deixar levar pela depressão, optando pela morte. Pelo contrário, seu dever seria o de combater por Javé, até o fim, sabendo ter Javé a seu lado, como experimentara na cena do Carmelo, onde se manifestara como o Deus verdadeiro, reduzindo a nada Baal e seus profetas (1Rs 18). “Elias não deveria estar no deserto, nem no Horeb. Deveria estar na terra de Israel. O profeta fugiu de sua responsabilidade e foi censurado por Deus... O deserto simboliza a fuga de sua responsabilidade profética” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 16).

4-De volta ao “campo de batalha”, o lugar do profeta (vv. 15-21)

O clímax e o desfecho comportam dois momentos: no primeiro, Javé dá orientações precisas ao profeta (v. 15-18)[14]; no segundo, Elias obedece e começa a fazer o que lhe foi mandado (v. 19-21). A primeira atitude de Javé consiste em mandar o profeta de volta, para o lugar de onde jamais deveria ter saído. “Vai e volta por teu caminho, rumo ao deserto de Damasco” (v. 15a). “Deus convida seu profeta a voltar sobre seus passos e a retomar o caminho pelo qual veio, para retornar ao reino de Israel e, aí, continuar sua missão” (BRIEND, 1992, p. 31). Javé não quer o profeta ali, pois não é seu lugar. O v. 15a poderia ser traduzido como “Vai, volta à tua tarefa, à tua missão” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 21). Por isto, a ordem de voltar (shûb). Este é o verbo da conversão (Os 14,2) que consiste em dar meia volta do caminho errado e retornar ao caminho correto. A volta física deveria corresponder a uma reviravolta espiritual no coração do profeta. “Voltar pelo teu caminho” implicava um processo de reflexão, em vista da mudança de atitude em relação ao que fizera. A volta para o lugar onde deveria estar supõe, também, uma volta para Deus. Lá, haveria de encontrar Deus muito mais do que no Horeb, pois lá é o lugar da luta e este, o lugar da fuga e da alienação. Quem foge e se aliena, dificilmente, fará a experiência de Deus. Portanto, a urgência de tomar o caminho de volta. Elias foi mandado de volta para a missão, “pois nada está terminado” (MIKOLAJCZAK, 1999, p. 22).

O caminho indicado por Javé soa estranho: “o deserto de Damasco”. Afinal, os arameus eram inimigos históricos de Israel. A ordem divina, portanto, complicou a situação do profeta: para chegar ao território dos inimigos, era preciso transpor o território de Israel, onde a fúria de Jezabel contra ele permanecia inalterada. Javé, jamais, confia tarefas fáceis a seus profetas, nem, tampouco, as facilita. São sempre tarefas difíceis, para pessoas de fibra, em cujos corações não há lugar para o medo. Se o profeta, de fato, é zeloso pelas coisas de Javé, só lhe resta obedecer.

Javé passa, então, a elencar uma série de providências a serem implementadas por Elias, tendo em vista fazer frente ao avanço do baalismo em Israel.

A primeira providência consistia em “ungir a Hazael rei de Aram”, ou seja, dos sírios (v. 15b). A providência misteriosa, à primeira vista, passa a impressão de nada ter a ver com as questões internas de Israel. O que mudaria no Reino do Norte com a substituição do rei do país inimigo? O texto bíblico não fala do profeta cumprindo esta missão. Em todo caso, é Eliseu quem dirá a Hazael que ele será o rei dos sírios (2Rs 8,14).

A segunda providência consistia em ungir Jeú, filho de Namsi, como rei de Israel (v. 16a). Esta ordem faz sentido: trata-se de recorrer à mediação política, para dar um basta ao baalismo. Qual o caminho? Promover um golpe de estado, servindo-se do general das tropas de Israel[15]. A ordem será cumprida bem mais tarde, por iniciativa do profeta Eliseu, que envia um membro da corporação dos filhos dos profetas a Ramot de Galaad, nos limites entre Israel e Síria, onde o exército de Israel combatia por questões de fronteira. Sua missão seria a de ungir Jeú como rei de Israel. A ordem foi cumprida e o general tornou-se rei, com uma missão bem precisa: “Assim fala Javé, Deus de Israel. Eu te ungi como rei sobre o povo de Javé, sobre Israel. Exterminarás a casa de Acab, teu senhor, e eu vingarei o sangue dos meus servos, os profetas, e de todos os servos de Javé contra Jezabel e contra toda a família de Acab. Exterminarei todo varão da família de Acab, tanto o ligado como o livre em Israel. Tratarei a família de Acab como a de Jeroboão, filho de Nabat, e a de Baasa, filho de Aías. Os cães devorarão Jezabel no campo de Jezrael; ninguém lhe dará sepultura” (2Rs 9,1-10). A missão de Jeú era bem precisa. Nada se fala do direito e da justiça, tão próprios na ação real, mas tão somente de morte, de sangue e de vingança. Jeú executou a ordem divina com uma fúria insuperável. O texto bíblico descreve com detalhes a ação exterminadora. Foi eliminada a casa real de Israel (2Rs 9,22-10,11) e, também, quarenta e dois membros da casa real de Judá, que foram visitar seus co-iguais do Reino do Norte (2Rs 10,12-14). Os fieis de Baal e sua infraestrutura cultual foram devastados (2Rs 10,18-27).

O extermínio de Jeú foi de tal modo brutal a ponto de merecer, séculos depois, a crítica do profeta Oseias (Os 1,4). Sem dúvida, a brutalidade de Jeú ficou impressa na consciência do povo. Aqui, convém um comentário. O profeta, cumprindo a ordem de Javé, optou por Jeú como mediação para implementar o projeto de reforma religiosa no Reino do Norte, onde o baalismo corria solto, encobertando toda sorte de injustiça. Uma vez feita a opção, não teve como manter o general-rei sob controle, de modo a colocar limites em sua fúria assassina. A narração bíblica não comporta um juízo do profeta Eliseu a respeito do modo de proceder de Jeú. Tê-lo-ia aprovado? Tê-lo-ia reprovado, como haveria de fazê-lo Oseias? Permanece a incógnita.

A terceira providência consistia em ungir Eliseu, filho de Safate de Abel-Meúla, profeta em substituição a Elias – “ao invés de ti” (v. 16b)[16]. A unção, usual apenas para os reis, colocaria Eliseu em pé de igualdade com Hazael e Jeú. Qual o significado da substituição? Javé não contava mais com a colaboração de Elias? A fuga e a depressão davam mostras de lhe faltar estofo para cumprir a missão de profeta? Javé preferia investir em outro profeta, com a esperança de ser alguém mais corajoso e impávido? São perguntas à espera de resposta!

Uma vez indicadas as mediações com as quais o profeta deveria contar – um rei, um general e um profeta –, Javé faz duas considerações. A primeira consideração estabelece a relação entre Hazael, Jeú e Eliseu, indicando o rumo da história – “Quem escapar à espada de Hazael, Jeú o matará; e o que escapar da espada de Jeú, Eliseu o matará” (v. 17)[17]. Apelando para o tema da morte, mostra como os adoradores de Baal não terão escapatória. Se não forem exterminados por um, sê-lo-ão por outro. É uma forma de mostrar como o caminho indicado para por fim ao baalismo é infalível. Se Elias o pusesse em prática, não haveria mais de ter motivos para fugir e ficar deprimido. E, mais, veria sua missão levada a cabo. Entretanto, o curso da história seguirá um rumo bem diferente.

Esta imagem de Javé, violento e exterminador, parece corresponder à cultivada por Elias. Na cena do Carmelo, o profeta dá ordens para prender os profetas de Baal, sem deixar escapar nenhum. Levou-os à torrente do Quison, e os matou “sem dó nem piedade” (1Rs 18,40). 1Rs 19 inicia-se com a alusão a este fato, recordando que Elias matou todos os profetas de Baal (v. 1). Esta imagem de Javé, veiculada num momento em que o culto baalista prevalecia, dando a impressão de ser Javé um deus fraco, teria a finalidade de recuperar, no coração do povo e do profeta, a confiança no Deus de Israel, de quem os feitos grandiosos eram recordados como fundamento da fé do povo?

A segunda consideração é uma forma sutil de criticar Elias que, por duas vezes, afirmara: “Mataram os teus profetas à espada; só eu escapei” (vv. 10.14). Diz-lhe Javé: “Guardei em Israel um resto de sete mil homens, todos aqueles que não dobraram os joelhos diante de Baal nem o veneraram com o beijo” (v. 18). O profeta enganava-se ao se considerar o único fiel a Javé restante. O número “sete”, com força simbólica apontando para plenitude, significa muita gente, não poucos. Elias era incapaz de atinar para esta realidade. Por que não contou com toda esta gente, preferindo o caminho do vanguardismo e do protagonismo? Se tivesse juntado as forças dos fieis javistas, com grande probabilidade, haveria de conseguir fazer frente às investidas da rainha baalista. Como agiu sozinho, ficou fragilizado e tomado pelo medo. Uma postura distinta haveria de lhe poupar da frustração.

Uma vez recebidas as instruções, o profeta partiu (v. 19a). Embora as palavras de Javé, de certa forma, pareceram descartá-lo, o profeta cala-se; apenas obedece. “A reação de YHWH foi a de dispensar-lhe os serviços. Ele não tem mais necessidade de Elias como seu profeta” (ROBINSON, 1991, p. 530). Doravante, a missão de enfrentar o baalismo seria levada adiante por Hazael, Jeú e Eliseu. Bastaria ao profeta ir à procura deles, ungi-los e deixá-los agir.

A narração omite a referência a qualquer sentimento interior do profeta. Nenhuma resposta é dada a Javé, nem mesmo para se desculpar pelo “papel feio” que fizera. Elias dá mostras de submissão, partindo calado para cumprir o que Javé lhe ordenara. Em todo caso, parece ter superado a depressão e a abulia, pois se dispõe a retomar o caminho na direção indicada por Javé. Como havia dito o mensageiro de Javé: “ser-te-á muito longo o caminho” (v. 7). Era preciso deixar de lado a busca pela confirmação dramática do status de profeta e de segurança pessoal (ROBINSON, 1991, p. 527).

Elias começa por implementar a terceira ordem de Javé: ungir Eliseu em seu lugar. Por quê? Caíra na conta de que sua missão havia chegado ao fim e era preciso passar, logo, o bastão adiante? Sente-se incapacitado para a missão, depois da experiência de fuga e de desejo de morrer? Sentiu-se dispensado por Javé, e se apressou em ir ao encalço do sucessor? Em todo caso, das três missões, só esta foi levada a cabo por ele.

Entre o “partir dali” e o “encontrou Eliseu” processa-se uma elipse, a velocidade máxima do tempo na narração, “que passa em silêncio um período da história contada” (Marguerat-Bourquin, 2009, p. 111). Das alturas do Horeb, passa-se aos campos de Abel-Meúla, onde Eliseu está executando a tarefa de lavrador. “Lavrava com doze juntas de bois; e ele mesmo conduzia a última” (v. 19b)[18]. Elias passa a seu lado, e lança a capa sobre ele (v. 19c)[19]. Eliseu não recebe a unção, pois ser profeta não é um cargo, no qual se é empossado (COGAN, 2001, p. 454). Ele, porém, entende tratar-se de uma convocação para seguir Elias, cuja fama devia ser bastante conhecida. O conflito com a casa real e a perseguição de que era vítima, com certeza, eram de conhecimento público.

            Eliseu devia abrir mão de seus bens para seguir o profeta. De fato, dispôs-se a obedecer, com uma condição: despedir-se dos familiares. “Deixa-me primeiro ir beijar meu pai e minha mãe, depois te seguirei” (v. 20b). Elias assente: “Vai e volta” (v. 20c)[20] e faz uma perguntar, aparentemente, enigmática: “Que te fiz eu?” (v. 20d)[21].

            A narração conclui-se com o foco centrado em Eliseu. Este volta e faz um gesto inesperado: mata os bois com os quais trabalhava e, com os instrumentos de trabalho, prepara o fogo para cozinhar a carne. Tendo-a cozinhado, dá-a ao povo. “A festa era mais que uma refeição com amigos. O conjunto da cena é emblemático da ruptura de Elias com o seu passado, que ele deixou para trás para se tornar o servidor pessoal do profeta” (COGAN, 2001, p. 455)[22]. Uma vez que todos se fartaram, ele “se levantou, seguiu Elias e pôs-se ao seu serviço” (v. 21c). A função de servidor de Elias prepara Eliseu para a futura substituição na função de profeta de Javé.

 Conclusão

Concluída a leitura de 1Rs 19, fica a pergunta: que lições se podem tirar para os profetas cristãos de hoje? A compreensão do texto bíblico fica incompleta, se não oferecer aos leitores pistas para a vivência da fé, pois a Bíblia se faz presente em suas vidas como mediação da Palavra de Deus. A leitura consiste, em última análise, numa forma de diálogo com o Deus que fala a seus fieis, no contexto histórico e existencial de cada leitura. Por conseguinte, importar aprender com a experiência de Elias.

Elias, em 1Rs 19, é o símbolo das pessoas comprometidas com o projeto de Deus e nele se lançam com toda coragem e generosidade. Porém, quando devem pagar o preço de sua opção, tendem a fugir, abandonando o campo da missão. As dificuldades tornam-nos impotentes e os bloqueiam. É como se Deus os tivesse abandonado, largando-os à própria sorte. Então, os horizontes se encurtam, e o cristão torna-se incapaz de ver para além de seus estreitos limites. A luta perde a razão de ser. Capitula-se diante da maldade e da injustiça. Viram-se as costas para os companheiros e companheiras de luta. Já não se é capaz de perceber as mediações que se tem à disposição para caminhar na contramão das tendências dominantes. É quando o profeta cristão, diferentemente do Mestre Jesus, foge do “lugar” onde deveria estar.

“Elias foi uma vítima do excessivo desejo de ser reconhecido como único profeta de Deus. Comete o mesmo erro de muitos líderes que pensam serem indispensáveis. A reação de Javé é a de dispensar-lhes os serviços” (ROBINSON, 1991, p. 529-530). O profeta cristão se reconhece como servidor do Reino, que, no final da jornada, é capaz de reconhecer: “Somos simples servos; fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). A obra, afinal, é de Deus. Engana-se quem assume como propriedade pessoal e exclusiva o que faz. A consciência de ser colaborador de Deus é fundamental na atividade do profeta cristão. Portanto, o primeiro interessado e o principal responsável por tudo é Deus. Sendo assim, não há por que temer diante da possibilidade do fracasso e da frustração!

A cena no Horeb ilustra a atitude dos cristãos que se refugiam nos espaços sagrados e religiosos, evitando encarar os desafios da missão. Os ares místicos e espirituais acabam por oferecer-lhes uma falsa segurança de “estar perto de Deus” e, por conseguinte, poderem estar em paz com a consciência. Assim como Elias foi censurado por não estar no lugar onde deveria, da mesma forma, Jesus censura quem se refugia nas igrejas, nas atividades eclesiais, no mundo da espiritualidade, nos lugares sacralizados, para não se lançar na construção de um mundo diferente. Sal da terra, luz do mundo e fermento na massa foram as metáforas usadas por Jesus para falar da relação dos discípulos – os profetas cristãos – na relação com o mundo. Dar as costas para o mundo é uma forma de negação do discipulado, uma negação da fé. Se o discípulo é autêntico, no seu refúgio, ouvirá a voz do Mestre ordenando-o voltar para o “lugar” da missão e abrindo-lhe os olhos para reconhecer o que é possível fazer. Foi o que aconteceu com Elias: Javé mandou-o de volta para o “lugar” do testemunho da fé. O Horeb não era o lugar adequado para quem, deveras, era consciente de ser profeta de Javé, a serviço de uma fé expressada na fraternidade e na justiça. Igualmente o discípulo de Jesus é motivado a abandonar os lugares viciados por uma falsa religiosidade e, como o Mestre, saber-se enviado para “anunciar a Boa-Nova aos pobres, proclamar a libertação aos presos e a recuperação da vista aos cegos, libertar os oprimidos e anunciar o ano da graça da parte do Senhor” (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).

            “A caminhada de Elias foi longa e penosa. Foi uma noite escura. Ele teve que aprender que, até dentro dele mesmo, Deus não estava do lado do Elias vitorioso e famoso, combativo e agressivo, que pensava ser o dono da luta contra os erros do rei, mas sim do lado do Elias reprimido e angustiado, perseguido e desanimado. Teve que descobrir, com a ajuda do próprio Deus, que havia mais de 7.000 homens que não tinham dobrado o joelho diante dos falsos deuses. Ele não estava sozinho; não era o único defensor. Elias estava tão fechado na sua visão da luta que já não era capaz de perceber os outros que lutavam a mesma luta ao seu lado. Deus lhe abriu os olhos através da experiência dolorosa dos seus limites. Elias teve que experimentar dolorosamente que Deus é livre, não só frente ao rei e aos opressores, que pensam poder controlá-lo, mas é livre também frente ao próprio Elias. É neste momento que Elias ficou livre para poder libertar!” (MESTERS-GRUEN, 1987, p. 81). Esta consciência fê-lo voltar para seu verdadeiro “lugar”. Semelhante consciência fará o profeta cristão estar no mesmo “lugar” em que esteve o Mestre Jesus, no serviço ao Reino de Deus.

Bibliografia

ALCANA CANOSA, Celso, Vocación de Eliseo (1Rs 19,19-21), Estudios Bíblicos 29 (1970) 137-151.

ÁLVAREZ BARREDO, Miguel, Las narraciones sobre Elías y Eliseo en los libros de los reyes. Formación y Teología, Carthaginensia 12 (1996) 1-123.

BRIEND, Jacques, Dieu dans l´Écriture, Paris, Cerf, 1992.

COGAN, Mordechai, I Kings. A new translation with introduction and commentary, New York, Doubleday, 2001. (The Anchor Bible v. 10)

MARGUERAT, Daniel – BOURQUIN, Yvan, Para ler as narrativas bíblicas – Iniciação à análise narrativa, São Paulo, Loyola, 2009.

MESTERS, Carlos – GRUEN, Wolfgang, O profeta Elias – Homem de Deus, homem do povo, São Paulo, Paulinas, 1987.

MIKOLAJCZAK, Mieczyslaw, Il viaggio di Elia nel deserto (1Re 19,1-18), Collectanea Theologica 69 (1999) 5-23.

ROBINSON, Bernard P., Elijah at Horeb, 1Kings 19:1-18: a coherent narrative?, Revue Biblique 98 (1991) 513-536.

 

*Publicado em Estudos Bíblicos nº 107 (2010) 35-49

Autor:

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

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[1] Para ROBINSON (1991, p. 533), apesar de vários episódios terem circulado, originalmente, de forma independente, e de os sinais de múltiplas autorias e redações serem claros, “a narrativa, como um todo, foi, cuidadosamente, organizada temática e estruturalmente”. Um elenco dos problemas presentes em 1Rs 19 está nas pp. 514-516.

[2] Explica-se, assim, o casamento de Salomão com a filha do Faraó egípcio e com muitíssimas outras mulheres (1Rs 11,1-3).

[3] “Seria isto, realmente, uma ‘confissão de impotência’ por parte da rainha, como sugeriu Skinner? Com o pano de fundo do Carmelo, poderia ter sentido que não mais estava livre para seguir seu caminho, como aconteceu quando matou, impunemente, os profetas” (COGAN, 2001, p. 451).

[4] MIKOLAJCZAK (1999, p. 14) vê no fato de deixar o servo para trás um sinal de abandono da missão, “e não pretende retomá-la. Não é um intervalo; é o fim de tudo”.

[5] Para BRIEND (1992, p. 17), “a palavra ‘pais’ parece designar aqui, a geração do deserto que murmurou contra Deus e que encontrou a morte neste lugar (cf. Nm 14,22-23). O profeta alinha-se com este grupo e deseja o mesmo destino”. MIKOLAJCZAK (1999, p. 14) vai noutra direção. Elias “acredita ter falido como profeta, exatamente como faliram os líderes religiosos precedentes”.

[6] COGAN (2001, p. 452) pensa diferentemente. Para ele, “embora nenhuma ordem direta lhe tenha sido dada, Elias reconhece dever continuar na direção do Horeb”.

[7] Para ÁLVAREZ BARREDO (1996, p. 39) “a peregrinação de Elias ao Horeb marca a totalidade do relato. Os motivos secundários foram acrescentados pensando neste filão narrativo”. O autor não cai na conta de se tratar de uma peregrinação equivocada.

[8] COGAN (2001, p. 452) entende tratar-se de “uma questão retórica que serve como uma abertura para a conversa”. BRIEND (1992, p. 28) pensa que “a questão colocada pela voz contém uma reprimenda. Deixa entender que Elias abandonou sua missão”. De fato, é preferível tomá-la como uma forma declarada de censura pela atitude do profeta, que está no deserto, quando seria alhures o lugar normal de sua atividade.

[9] Atitude semelhante teve Elias, no monte Carmelo, ao declarar: “Eu sou o único profeta do Senhor que resta” (1Rs 18,22), como se fora um solitário.

[10] Para BRIEND (1992, p. 23), não se trata, propriamente, de teofania, no sentido estrito. Mas de uma “chamada de atenção, de maneira narrativa, quanto à modalidade da presença de Deus”. Os motivos são: os fenômenos acontecem “diante do Senhor” e não acompanham a passagem do Senhor; não ocorre o verbo “ver”, só o verbo “ouvir”. Elias nada vê, apenas ouve uma voz, que ressoa no silêncio.

[11] Vários autores perceberam a correlação entre a cena de Elias no Horeb e a de Moisés no Sinai (ÁLVAREZ BARREDO, 1996, p. 39-40; MIKOLAJCZAK, 1999, p. 8-11).

[12] BRIEND (1992, 13-38) traduz a expressão hebraica por “voz de fino silêncio” – “voix de fin silence”. “Manifesta que Deus não se impõe à consciência. Ele lança um apelo que, para ser entendido, obriga a um discernimento”.

[13] Para ROBINSON (1991, p. 528), “Elias está tão cheio da consciência da própria importância, que se apressa a cobrir-se, antes mesmo de acontecer a teofania e sem esperar ser mandado”.

[14] Para MIKOLAJCZAK (1999, p. 22), “a ordem e a promessa de Deus nos v. 15-18 é o clímax da narrativa. Responde e corrige o lamento de Elias nos vv. 10.14.

[15] MESTERS-GRUEN (1987, p. 23) perguntam: “Deus manda organizar um golpe de estado. Por quê? Será que o profeta não teria recursos espirituais mais eficientes para mudar a situação sociopolítica errada?”

[16] “Ao invés de ti”, ou seja, “em teu lugar” é uma fórmula típica de sucessão (1Rs 5,19; 11,43; 14,20.31; 15,8.24.28; 16,6.10.28; 22,40.51).

[17] O narrador não tem preocupação histórica no que se refere aos vv. 15-17.

[18] Para ALCANA CANOSA (1970, p. 140) este versículo revela “a condição social de Eliseu. De família rica e latifundiária, sacrificou tudo para seguir a vida profética... Era um israelita muito rico, com todas as comodidades terrenas que, humanamente, se pode almejar” (grifo do autor).

[19] “O manto era símbolo da personalidade de quem o vestia e nele estavam os direitos de seu dono... o manto implica a pessoa” (ALCANA CANOSA, 1970, p. 144 – grifo do autor). Quando Davi cortou um pedaço do manto de Saul, em Engadi, era como se tivesse tocado, diretamente, nele (1Sm 24,1-8). Nos evangelhos, tocar no manto de Jesus correspondia a tocar nele (Mc 5,28).

[20] ALCANA CANOSA (1970, p. 147) faz uma leitura demasiado light das palavras de Elias a Eliseu. “O sentido mais provável é o seguinte: ‘Vai, volta aos teus, pois nada te fiz que to impeça’. Segundo esta concepção, Elias outorga a permissão, ao mesmo tempo em que apresenta o profetismo com exigências não demasiado rigoristas. Dever-se-ia concluir daqui que a vocação profética não supõe a ruptura de todo laço familiar”. É mais conveniente dar às palavras de Elias um sentido forte de exortação a Eliseu de não cair na tentação de voltar atrás da decisão de segui-lo, e permanecer com os familiares.

[21] COGAN (2001, p. 455) pensa que “Elias desafiou Eliseu negando que houvesse algum significado na capa lançada sobre ele ou que tivesse pedido algo dele”.

[22] ALCANA CANOSA (1970, p. 149) pensa tratar-se de um “banquete sagrado”, com “sacrifício de comunhão” em honra de Javé, e não um “banquete profano” (cf. 1Sm 6,14.15b; 2Sm 24,22.25a).