Frei Antônio Corniatti, OFMConv, de São Bernardo do Campo, São Paulo.

(NOTA: As reflexões sobre a misericórdia são tiradas de um artigo de Frei Hermógenes Harada, OFM (1928-2009)

Com adaptação de Frei Antônio Corniatti, OFMConv)

Dia 03 de Agosto (Sexta-feira) 8a reflexão (Manhã). “Servir a Jesus Cristo... inspirando-nos em Maria”, mãe de misericórdia

             No Evangelho de Lucas, na noite do Natal de Jesus, um anjo aparece a alguns pastores da região e anuncia o nascimento do Senhor, dizendo: “Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que é para todo o povo: nasceu-vos hoje um salvador que é Cristo Senhor, na cidade de Davi. Este será o sinal: encontrareis o menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”. Os pastores disseram uns aos outros: “Vamos já para Belém, para ver o acontecimento que o Senhor nos manifestou”. Foram com presteza e encontraram Maria, José e o menino deitado numa manjedoura. Vendo, contaram sobre as coisas que lhes foram ditas sobre o menino. Todos que ouviam, maravilhavam-se com o que lhes diziam os pastores. E Lucas observa: “Maria conservava todas aquelas palavras, conjeturando em seu coração” (Lc 2,9-20).

            O mesmo Evangelho de Lucas, ao falar de Jesus aos 12 anos no templo, relata a aflição de Maria e José ao procurarem por toda a Jerusalém o menino, e a alegria e a surpresa de o encontrarem no templo entre os doutores. Diz Lucas: “Quando o viram, admiraram-se e a mãe lhe disse: ‘Filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos.’ E ele lhes respondeu: ‘Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa do meu Pai?’” Observa o evangelista: “Eles não entenderam o que lhes dizia... E sua mãe conservava a lembrança de tudo isso no coração“ (Lc 2,48-52).

            Nas bodas em Caná da Galileia, tendo acabado o vinho, disse-lhe a mãe de Jesus: “Eles não têm vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, que há entre mim e ti? Ainda não chegou minha hora”. Disse a mãe aos servos: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,3-5). Na Sexta-Feira Santa, diz São João, “junto à cruz de Jesus estava de pé sua mãe...” (Jo 19,25).

            Não sei se uma tal maneira de ler o Evangelho é legítima, mas, se a gente lê e relê esses raríssimos e breves relatos do Evangelho sobre Maria, aos poucos, através desses textos sóbrios, sente-se crescer, qual um fundo imenso e generoso na claridade suave de uma presença indizível, o vulto de Maria, discreta, silenciosa, cheia de pudor e continência no cuidado humilde e diligente de todas as coisas.

De fato, Ela ali está:

- no alvoroço do nascimento na pobreza do presépio;

- na resposta inesperada do filho de 12 anos no templo à aflição dos dias angustiantes da busca;

- no corre-corre dos afazeres de um casamento em Caná da Galiléia;

- na morte do seu filho, de pé, junto à cruz

            Sempre e cada vez, na simplicidade serena e absoluta de um sim total. É a disponibilidade incondicional de doação do encontro do amor da Virgem e Mãe, que sempre e cada vez, em todas as vicissitudes da vida, desde o início até o fim, diz pronta e simplesmente, com toda alma e com todo o coração: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

[O Ser de Maria: em tudo fazer a vontade de Deus]

            Maria, Virgem e Mãe! Virgem, na limpidez e vitalidade intacta da doação absoluta de amor; Mãe, na fecundidade generosa e inesgotável dessa doação. Não é ela:

- a re-petição de, e a sintonia e repercussão com Jesus Cristo, cujo alimento é fazer a vontade do Pai? (Cf. Jo 4,34);

- a perfeita imitação de Jesus Cristo, que diz ao entrar no mundo: “Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas me preparaste um corpo... Então eu disse: ‘Eis-me aqui, venho para fazer, ó Deus, a tua vontade’” (Hb 10,5-7)?

            E é desse Jesus Cristo, filho de Maria, que diz São Paulo: “... subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas se aniquilou a si mesmo, assumindo a condição de servo por solidariedade com os homens. E se apresentando como simples homem, humilhou-se, feito obediente até a morte, até a morte da cruz” (Fl 2,6-8).

            Aqui nitidamente aparece o vulto de Maria, que não é outra coisa do que a concretização viva, corpo a corpo, da imitação de Jesus Cristo, cuja vida, cuja existência é fazer a vontade do Pai.

            Quem foi mais próxima, mais semelhante, a Jesus Cristo do que Maria Santíssima? Em sendo mãe, ela foi a discípula, a mais achegada e mais fiel do filho, pensando, sentindo, querendo e agindo como ele e com ele. Nesse sentido, podemos dizer que é em Maria que se realiza de modo mais pleno e perfeito o que Jesus diz pessoalmente a cada um de nós, cristãos, seus discípulos: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Eis minha mãe e meus irmãos: aquele que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,33-35).

            É interessante observar que Maria Santíssima, no Evangelho, apenas é qualificada como aquela que faz a vontade de Deus: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se se em mim segundo a tua palavra”. Nessa sobriedade da fala do Evangelho acerca de Maria, não se oculta a imensidão, a profundidade incomensurável do ser de Maria, que em tudo, total e radicalmente, esteve junto de Jesus, silenciosa, discreta, como o ar, como o sopro vital que o encobre, envolve-o, sendo em tudo como ele, “segundo a vontade do Pai”?

            Portanto, se quisermos marcar bem a diferença ou a identidade do ser de Maria Santíssima, poderemos caracterizá-la como um relacionamento pessoal de compromisso total e radical com Jesus Cristo, na sua imitação, ou melhor, no seguimento e discipulado, no projeto existencial que se formula: em tudo, desde o início até o fim, fazer a vontade de Deus.

[Nossos ídolos e o Deus de Jesus Cristo]

            Essa fala da Espiritualidade cristã, no entanto, é inteiramente falsificada se eu entendo a “vontade de Deus” no sentido geral e usual. É que costumamos usar a expressão “vontade de Deus” muitas vezes para neutralizar o confronto pessoal, duro e corpo a corpo com o que, a partir de nós mesmos, chamamos de Deus, e para assim nos pouparmos da tarefa inalienável de distinguir entre o deus, ou melhor, o ídolo que eu me ajeito para mim mesmo, e o Deus de Jesus Cristo. Sem essa distinção não se realiza o verdadeiro encontro de amor com Deus. Por isso, se a expressão “fazer a vontade de Deus” ou expressões similares – como por exemplo, “é vontade de Deus”, “foi Deus que quis”, “se Deus quiser” – contiver em si, por menos que seja, a ideia de fatalidade, de uma resignação diante de um destino inevitável, de um suportar porque não há outro jeito, então elas não trazem à fala a compreensão cristã da vontade de Deus. Antes, pelo contrário, falsificam-na. Pois o conceito de Deus que está pressuposto atrás de uma tal acepção da vontade de Deus tem pouco a ver com o Deus de Jesus Cristo.

            Fazer a vontade de Deus, na acepção da Espiritualidade cristã, não é executar a ordem do patrão celeste, não é “conformar-se” ao arbítrio de um senhor absolutista, nem sequer é, resignado, deixar que o poderoso faça como ele quer e acha melhor, pois ele é aquele que tudo pode e tudo sabe.

            Fazer a vontade de Deus no sentido cristão é, antes, querer, isto é, amar a Deus, revelado e testemunhado com a morte da cruz, por Jesus Cristo, amá-lo com todo o coração, com toda a alma e toda a mente, e nesse amor, procurar compreender cada vez mais o coração desse Deus, entrar totalmente na dinâmica do seu projeto, sentir, pensar, ser e agir como Ele; sim, querer, amar como Ele quer e ama. E na imensidão, na profundidade e no abismo desse amor, amar com Ele, como Ele todos os homens e todos os seres, o universo, no tempo e no espaço, pela eternidade a fora (Cf. Mt 22,37-39; Jo 13,12-15; 15,1-17).

           Essa disposição amorosa de querer como e o que Deus quer, de amar como Ele ama, é relacionamento de abertura para e recepção do Tu-absoluto. É a disposição de total doação na incondicional abertura de si a Outro.             Essa abertura é, ao mesmo tempo, o recolhimento para a intimidade a mais profunda de recepção do Outro, na atenta ausculta do seu toque, do seu desejo, da sua vontade. Esse abrir-se, que se recolhe como que no toque da intensa ausculta obediente ao Tu-absoluto, aparece no olhar da face serena da “Pietá” de Miguel Ângelo, no olhar atento da Virgem Maria na “Anunciação” de Fra Angélico.

[Distintivo existencial do ser-cristão]

            Esse engajamento por Jesus Cristo e pela sua Revelação, o tê-Lo como Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6) é o distintivo existencial do ser-cristão. Trata-se, pois, da existência de encontro com Jesus Cristo. Aqui, tudo que se faz, tudo que se pensa, tudo que se sente não tem mais a fragmentação setorizada do modo de ser usual e geral.      Tudo é impregnado desse singular encontro, é animado e informado por esse encontro único. Por isso, numa tal existência cristã não há uma realidade geral e em si ocorrente que se divida em setores, aspectos, formas ou partes.            Assim, se falo da meditação, da contemplação, da oração ou da ação, se celebro liturgia, se trabalho na pastoral, se estou acordado ou dormindo, portanto, se estou nessa ou naquela, todas essas “realidades”, todas essas “coisas” são realidades, não porque assim ocorrem em si, quais entes existentes por si e em si, constituindo a ocorrência do nosso ser-humano; mas são realidades, porque estão na dinâmica do engajamento total e absoluto do seguimento de Jesus Cristo. A palavra cristão, aqui nessa realidade nova e singular, não é adjetivo. É substantivo! Por isso, por exemplo, na expressão “meditação cristã”, meditação é adjetivo e cristã, substantivo!

            Se essa colocação for válida, se o ser-cristão de algum modo for assim, então, por exemplo, a meditação cristã não é meditação no sentido de um método, não é terapia, não é busca da perfeição, da melhoria da saúde, seja física ou mental, não é abertura da mente, serenidade, harmonia e equilíbrio, nem mesmo iluminação! Tudo isso seria ainda uma “burguesia” espiritualista. É, antes, simplesmente, diretamente o próprio trabalho engajado, suado do amor do seguimento de Jesus Cristo, a transpiração da imitação de Cristo. Não é outra coisa senão, com toda a mente, com toda a alma e com todo o coração, investigar, conjeturar, tentar entender melhor, cada vez mais profunda, vasta e originariamente, tudo que foi dito sobre Jesus Cristo, por Jesus Cristo, como Revelação. É guardar tudo isso no fundo do nosso coração e sempre de novo o trazer ao vigor da re-cordialização, isto é, recordação, lembrança, memória, ruminá-lo, buscar, buscar e tentar penetrar na dinâmica do projeto do amor de Deus de Jesus Cristo, que nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,7-19).

            Não é isso que está escrito no Evangelho acerca de Maria, Virgem e Mãe, quando nos diz que Maria, no Natal, conservava todas aquelas palavras, conjeturando, isto é, meditando em seu coração? Não é isso que ela, silenciosa e radicalmente, estava fazendo quando não entendeu a resposta do menino Jesus no templo, mas conservava a lembrança de tudo isso no coração? Não é isso que Maria fazia quando, diante da resposta aparentemente dura do seu filho (“Mulher, que há entre mim e ti? Ainda não chegou a minha hora”), disse simplesmente aos servos: “Fazei tudo que ele vos disser”? E a mãe de Jesus, de pé (!), junto da cruz na agonia do seu filho... Não é isso a absoluta disponibilidade de uma entrega corpo a corpo, para valer, em seguir Jesus Cristo na sua obediência incondicional ao amor do Pai, até a morte, e morte de cruz?

APÊNDICE

O GRITO DE JESUS NA CRUZ[1]: "DEUS MEU, DEUS MEU, POR QUE ME ABANDONASTE"?

Dissemos acima, na 7ª reflexão, princípio 2, que estudar profundamente o amor-misericórdia, revelado em Jesus Cristo Crucificado é tarefa fundamental dos Frades Carmelitas, que têm por compromisso irrenunciável e missão estar no meio dos mais abandonados, dos mais pobres, dos mais injustiçados, servindo-os em humildade e ternura do Deus-Misericórdia que não hesitou em morrer na cruz por nós.

            No que toca a Jesus Cristo Crucificado da Fé, resumamos o conteúdo do capítulo 4, intitulado O lugar do grito de abandono dentro do relato atual, do livro de Rossé[2]. O capítulo considera o texto atual de Marcos 15,33-39 tal como o escreve Marcos ou como o temos atualmente. Portanto, na perspectiva diferente daquela das pesquisas historiográficas acerca do Cristo histórico, mas pressupondo todo o relato da paixão e morte de Cristo, a partir e dentro da experiência da Fé da comunidade primitiva.

Texto: Mc 15,33-39

À hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona. E à hora nona, Jesus deu um grande grito, dizendo “Eloí, Eloí, lamá sabactháni” que, traduzido, significa: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Alguns dos presentes, ao ouvirem isto, disseram: “Eis que ele chama por Elias!” E um deles, correndo, encheu uma esponja de vinagre e, fixando-a numa vara, dava-lhe de beber, dizendo: “Deixai! Vejamos se Elias vem descê-lo!” Jesus, então, dando um grande grito, expirou. E o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo. O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que havia expirado deste modo, disse: “De fato, este homem era filho de Deus!”

A palavra-chave do grito de Jesus na cruz é abandono.

            E o Deus do Abandonado, Jesus Crucificado, é Abba Pai. Pai num sentido todo próprio e único, dentro do encontro de amor, Tu a Tu, na intimidade inenarrável da comunhão e união Pai-Filho, que só pode ser compreendida nela mesma.

            Diz Rossé: O grito “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” adquire uma nova dimensão se for compreendido na perspectiva do Evangelho, no seu conjunto. Evangelho que Marcos colocou sob o título de “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”[3].

            À luz de sua vida, do seu relacionamento ímpar com o Pai, do seu anúncio da aproximação do Reino de Deus, o grito na cruz adquire a dimensão da vida íntima do próprio Deus.

            É exatamente no horto do Getsêmani que o evangelista transmite, pela única vez, o apelativo aramaico com que Jesus costumava expressar sua relação pessoal com Deus: Abba.

            O “Deus meu” invocado no Calvário não é outro que o Abba, o Deus a quem Jesus se dirigia durante sua existência com uma confiança filial, com a segurança e a ternura de uma criança para com seu “papai”, o pai do qual sabe que depende inteiramente. Existe entre Jesus e seu Deus um laço muito original[4].

            Rossé conclui citando P. Ferlay: Acontece que na cruz Deus Pai deixa morrer aquele que pretendia ser seu Filho. Ou tal pretensão era vã, e então a cruz não pode ser senão o fim da aventura do homem Jesus. Ou então essa pretensão é fundada, e neste caso a cruz constitui o cume da revelação sobre a vida íntima de Deus[5].

           Na passagem de Mc 15,33-39 há uma escalação crescente no processo de convergência de tudo para a morte, que culmina no grito de Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”, e segundo Rossé, serve para comunicar uma dimensão de revelação escatológica. Essa escalação crescente no processo de convergência de tudo para a morte, expressa na culminância da morte e do abandono como o grito de Jesus, está no todo do Evangelho de Marcos como a consumação e remate de uma história do destinar-se da existência de Jesus Crucificado: a existência crucificada de Jesus, portanto, não é uma fatalidade inevitável, vítima de um destino cego, mas caminho assumido, querido por Jesus sob o signo do querer divino: “É necessário que o Filho do Homem sofra muito”[6]. “O destino ao encontro do qual vai livremente é posto na vontade do Pai. Marcos manifesta assim a realidade que move Jesus: sua fidelidade à própria mensagem, a obediência Àquele que é sua própria razão de ser”[7].

            Sob as brutalidades e crueldades dos suplícios dos passos da paixão de Jesus, desde o horto de Getsêmani até o grito da morte no Calvário, desenrola-se oculta e silenciosa outra história, a história de amor entre o Filho e o Pai, que chega à culminância do abissal encontro de amor no grito: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”

            Esse grito, segundo Marcos, é a única palavra de Jesus na cruz! E esse grito de abandono não chega de forma imprevista, como um fato isolado, por acaso. Há uma espécie de gradação no suceder-se dos fatos que o preparam e o introduzem; essa gradação é feita para um esquema de “três horas” (Mc 15,25-33); as três primeiras horas (25-32) são ocupadas pelas zombarias dos que passam por ali, dos sumo-sacerdotes e dos escribas[8]. As três horas seguintes, da sexta à nona, são trevas em crescendo, num ritmo exacerbado para culminar na hora nona, quando Jesus grita: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” E as trevas que invadem a terra inteira penetram no íntimo de Cristo.

            Diz Rossé: Observa-se tal crescendo através de toda a paixão. Desde o início, Jesus é apresentado num progressivo estado de despojamento e de solidão: durante a agonia no horto do Getsêmani, os discípulos dormem (Mc 14,37), depois o abandonam fugindo (Mc 14,50); Pedro o renega publicamente (Mc 14,54ss.). Também a multidão se afasta; debaixo da cruz o escarnecem juntamente com os representantes da autoridade religiosa de Israel e com os malfeitores (Mc 15,29ss). A esta altura dos acontecimentos, o Crucificado, despojado também de suas vestes – o que sublinha ainda mais sua solidão – está plenamente abandonado. É quando Jesus penetra na solidão das solidões: a experiência da ausência de Deus[9].

            Diante dessa descrição que Marcos faz da Via Crucis de Jesus, Rossé observa: “Não padece dúvida que para o evangelista o grito de abandono se encontra no ápice narrativo e teológico do relato da paixão e da morte de Jesus.”

            E conclui: O leitor não pode subtrair-se à impressão de total obscuridade e solidão, proporcionada pela leitura do texto. O estilo sóbrio e lacônico do relato da crucifixão torna ainda mais impressionante o despojamento exterior e interior, a solidão extrema a que chegou Jesus moribundo. Ele ocupa o centro da narrativa, mas um centro que o apresenta como o abandonado pela terra e pelo céu, pelos homens e por Deus. Em suma: “a morte de Jesus deixa no momento somente a impressão do fracasso total. A libertação falhou[10]. Assim, o Filho de Deus atravessou toda a escala da angústia humana. Viveu a morte em todo o seu trágico significado religioso, adquirido em consequência do pecado: afastamento de Deus. Como dirá Paulo, tornou-se “pecado”, “maldição” (2Cor 5,21; Gl 3,13), isto até a extrema consequência do pecado: a morte. Filho encarnado assumiu, em toda a sua dimensão, até as últimas consequências, a condição humana de afastamento de Deus[11].

           Tudo isso, esse total abandono e fracasso, na visão da Fé, mostra-nos totalmente outra paisagem. De repente, tudo se vira pelo avesso: o extremo abandono é, na realidade, a plenitude de amor, a profunda solidão se converte em unidade total. No momento em que parece desamparado, está mais do que nunca identificado com o querer divino, transparente ao Pai. Nessa fraqueza sem fim, Jesus se acha, sem reserva, “entregue” ao poder do Pai, totalmente aberto ao ato criador da ressurreição[12].

Para refletir. Textos: Mc 15,33-39

Admoestação 6 de São Francisco: Da imitação do Senhor

                        1Atendamos, Irmãos, o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas (Cf. Jo 10,11), suportou a Paixão da Cruz. 2As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome (Cf. Rm 8,35; 2Cor 11,27), na enfermidade e na tentação e em tudo o mais; e disso receberam do Senhor a vida sempiterna. 3Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las.

Questionamentos

1-O que imagino, qual o impacto que recebo, quando diariamente ouço a palavra "Cruz"?

 2-A partir do texto Ad 6, qual o impacto que São Francisco recebe ao dizer "Paixão da Cruz"? 

A Formação permanente: 2C 102; 2C 105: Um antigo e sempre novo segredo da formação permanente religiosa

Texto: 2Celano 102: Como foi de ciência e de memória

1Embora este Bem-aventurado homem [São Francisco] não fosse favorecido por nenhum estudo científico, contudo, aprendiz das coisas que são do alto, da sabedoria de Deus (Cf. Cl 3,2; Tg 1,17) e iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. 2Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios (Cf. Cl 1,26), e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor. 3Lia os livros sagrados, de quando em quando, mas o que punha uma vez no espírito ficava indelevelmente escrito em seu coração (Cf. Rm 2,15; 2Cor 3,2). 4Tinha a memória no lugar dos livros, porque o que o ouvido captava uma sós vez não ficava em vão, pois, permanecia refletindo com afeto e em contínua devoção (quod continua devotione ruminabat affectus).

5Dizia que era muito mais frutuoso esse modo de aprender e de ler do que ficar folheando milhares de tratados. 6Achava que filósofo verdadeiro era aquele que desejava mais a vida eterna do que todas as outras coisas. 7Afirmava que passaria facilmente da ciência de si mesmo para a ciência de Deus (Cf. Pr 2,5) aquele que procurasse entender as Escrituras com humildade e sem presunção. 8Era frequente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões, porque, embora inculto nas palavras (2Cor 11,6), destacava-se vantajosamente no intelecto e na virtude.

Texto: 2Celano 105: ( São Francisco) manifesta o que sabia a um Irmão quando foi exortado ao estudo da Sagrada Escritura

1Quando estava doente e cheio de achaques, disse-lhe uma vez um companheiro: “Pai, sempre te refugiaste nas Escrituras, elas sempre foram um remédio para tuas dores. 2Peço que mandes ler alguma coisa dos profetas, pode ser que teu espírito exulte no Senhor (Cf. Lc 1,47)”. 3O Santo respondeu: “É bom ler os testemunho das Escrituras, é bom procurar nelas Deus nosso Senhor, 4mas eu já me inteirei de tanta coisa das Escrituras que tenho o suficiente para recordar e meditar. 5Não preciso de mais nada, filho. Conheço o Cristo pobre e crucificado (Cf. 1Cor 2,2).

Refletindo a partir deste texto-fonte franciscano:

Hoje vivemos uma profunda crise da formação inicial e permanente, especialmente diante dos desafios à Vida Religiosa Consagrada. Nessa crise, não sabemos mais que rumo tomar, o que fazer. Por não saber bem que rumo tomar, não se tem mais uma orientação segura. Agitamo-nos em diferentes colocações, nos debatemos em tentativas não muito clarividentes de solução.

Em tal crise é necessário nos assentarmos numa busca mais finita, determinada, mais próxima de nós. Com outras palavras, é necessário buscar a solução não longe, nas regiões alheias ao nosso projeto de vida, mas sim bem perto, em casa. Se, porém, tentarmos com muito empenho e seriedade vasculhar a nossa própria casa, a nossa proximidade chamada ser carmelita, descobriremos em casa um tesouro escondido, que se bem assimilado pode transformar-se num segredo antigo e sempre novo da nossa formação carmelita. De que tesouro se trata? Trata-se de duas obras escritas: as Sagradas Escrituras ou Bíblia e a nossa Regra de Vida.

Estas duas obras devemos ler. Será que as Sagradas Escrituras e a nossa Regra de Vida, lidas, estudadas, meditadas, experimentadas, trabalhadas passo a passo, todos os dias, longamente por anos a fio, não poderiam se transformar no Manual originário e fundamental, de onde os formadores e os formandos da vida carmelita e cada Frade, sim devessem haurir todas as orientações e normas de sua formação?

Esse estudo que deve ser intenso e de grande volume de trabalho, ser profundo e bem cuidadoso no rigor e na precisão da compreensão não coincide com o estudo acadêmico usual, cientificista. Mas também não coincide com “estudo edificante” e piedoso de vivências espirituais, ou melhor, espiritualistas. Não se trata, portanto, da leitura “espiritual” ou reflexão partilhada de trocas de opiniões subjetivas espiritualistas. Trata-se realmente de estudo, de intenso trabalho suado da busca e pesquisa da verdade. Trata-se de um estudo existencial, isto é, empenho no qual está em jogo e engajamento de toda uma existência humana. Trata-se, pois, de um estudo no estilo como São Francisco de Assis leu e assimilou as Sagradas Escrituras. São Francisco de Assis leu e assimilou de tal forma as Sagradas Escrituras que em tudo que ele era, fazia, falava, pensava, sentia, irradiava o Evangelho. Atrás de tal irradiação existe um imenso volume de trabalho, de estudo para a compreensão viva e dinâmica, de meditação, de assimilação.

O que e como fez São Francisco de Assis, segundo o texto acima?

A primeira coisa que ele fez foi acreditar de todo o coração, com a absoluta e pura positividade discipular que as Sagradas Escrituras eram o livro de Deus, o livro do povo de Deus, onde estava guardado o arcano, o grande segredo escondido do vigor do Deus de Jesus Cristo. Ele acreditava, sim sabia que um livro assim está impregnado da experiência viva de todo um povo, especial e extraordinário, chamado Povo Cristão. Não é, pois, um livro qualquer. Tal crença não é crendice fanática. É antes uma experiência, experiência de quem, viva, concreta e intensamente está enraizado, está unido na pertença real a uma grande comunidade chamada Povo Cristão, a Igreja. Trata-se, pois, de uma experiência viva da participação simbiótica com a imensa e profunda experiência de milhares e milhares de pessoas, que desde Jesus Cristo até nos dias de hoje constituem essa imensa família, raça, povo, chamado Povo Cristão[13].

Mas, como é esse estudo de leitura existencial?

  1. a) Pega-se o livro com duas mãos, isto é, com todo o ser, com grande reverência, sabendo que você ali tem nas mãos o vigor, a orientação, a evidência, a fé, vida de milhões e milhões de irmãs, irmãos, pais, mães, filhos e filhas, esposos e esposas, parentes de sua raça, do seu povo, da sua família, de pessoas que desde Jesus Cristo vieram até hoje, pessoas altamente inteligentes, autênticas, cheias de boa vontade extraordinariamente discipular, todas elas sábias e experimentadas no Seguimento.
  2. b) E, então, começa-se a ler. Paciente, humildemente, com gratidão, cheio de interesse e atenção obediente. Mas não usa o que está ali para defender a sua posição, por mais nobre que ela seja. Não usa o que lê para a sua própria satisfação, por mais nobre e sublime que seja a sua busca. Antes pelo contrário, se coloca desarmado, com o coração vazio de todo o apego, preconceitos e prejuízos, inteiramente concentrado, com plena atenção cuidadosa, para se abrir ao que as Sagradas Escrituras, e também a Regra de Vida lhe ditam. Deixa-se questionar por ele. Purifica-se. Torna-se cada vez mais obediente, todo ouvido de ausculta dinâmica e atenta, uma ausculta cordial de discípulo.
  3. c) E na medida em que, nesse contínuo confronto, lhe vem de encontro uma compreensão, uma evidência, não subjetiva, a partir do que você sabe, quer e pode, mas a partir do que as Sagradas Escrituras e a Regra de Vida lhe dizem, começar a ver tudo, Deus, Homem e Universo, os sofrimentos, as lutas, as adversidades, enfim tudo, à luz dessa nova compreensão.

Tal estudo, não seria ele o estudo, o mais direto, o mais próximo, que todos nós poderíamos realizar, sempre e em toda a parte, em todos os momentos e em todas as situações? É tal estudo profissional básico e elementar, a partir do qual tiraríamos todas as nossas orientações e diretrizes da formação carmelita.

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Para refletir:

 "O Deus de Jesus Cristo, o Pai, só compreendo se me tornar Ele, isto é, seu filho em Jesus Cristo, no seguimento de Jesus Cristo, no encontro corpo a corpo, na busca engajada, humilde e devotada da sua imitação" (Cf. Frei Hermógenes Harada [1928-2009], OFM, em Coisas, velhas e novas, pág. 409).

1- Como é compreendida a formação nesta colocação?

2-Quais são seus elementos básicos?

3-É assim que eu, na prática, compreendo e procuro fazer minha formação? Sim, não, por quê?

4-Quais as dificuldades que encontro para por em prática uma formação assim compreendida?

5-Em que eu fundamento a minha formação permanente carmelitana?

*CARMELITAS: RETIRO ESPIRITUAL ANUAL.

ORDEM DO CARMO – PROVÍNCIA CARMELITANA DE SANTO ELIAS

Data: 30 e 31 de Julho e 01 a 03 de Agosto de 2018. Início, 30 à noite. Término, 03 ao meio-dia.

Local: Casa São José - Belo Horizonte - MG

Assessoria: Frei Antônio Corniatti, OFMConv

Tema: Nós, frades carmelitas, somos chamados a ser "Misericordiosos como o Pai" na Vida Espiritual-Religiosa, na Vida Fraterna, na Vida de Trabalho e Serviço

Objetivo: Refletir a partir da misericórdia e suas implicações no dia-a-dia da vida consagrada

 

[1] Esta reflexão é tirada do livro de Frei Hermógenes Harada, OFM (1928-2009), Em comentando I Fioretti, págs. 181-186, 2ª ed. revista, Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006

[2] ROSSÉ, Gerard. O grito de Jesus na Cruz, um enfoque teológico e exegético. São Paulo: Cidade Nova, 1986. p. 60-70

[3] Mc 1,1.

[4] ROSSÉ, G., op. cit. 60-61; KASPER, W., Gesù il Cristo. Brécia: Queriniana, 1975. p. 161: “Se no momento em que está para morrer, Jesus grita a Deus, ele não grita apenas ao Deus do Antigo Testamento, mas àquele Deus que, num sentido exclusivo, ele chamava de Pai e com o qual se sentia ligado de uma forma toda singular”, em: ROSSÉ, G., op. cit. 61, nota 63. Rossé, se referindo a Moltmann, J. Il Dio Crocifisso, Brécia: Queriniana, 1973. p. 175; 177 diz que J. Moltmann é ainda mais explícito, e cita: “Habitualmente, o significado do grito se fundamenta sobre aquele da oração do Salmo 22. Embora a formulação seja idêntica, o conteúdo não deve sê-lo necessariamente; e é fácil esquecê-lo quando se reflete apenas em nível de história da tradição. Mais correto do que interpretar o grito de Jesus no sentido do salmo 22, é interpretar as palavras do salmo no sentido da situação de Jesus. No salmo 22, por ‘Deus meu’ se entende o Deus da aliança com Israel, e o sujeito da invocação é o parceiro da aliança, o justo sofredor. No ‘Deus meu’ de Jesus, encontra-se, ao invés, o inteiro conteúdo da sua mensagem sobre o Deus próximo e misericordioso, onde fala muitas vezes em ‘meu Pai’ num sentido exclusivo... O Deus a quem dirige o seu grito é o ‘seu’ Deus e Pai. Não se trata, é claro, de outro Deus, mas antes de uma relação de todo peculiar com Deus, diversa daquela típica das tradições de Israel. Analogicamente, o sujeito da invocação não se identifica com o justo do Antigo Testamento, mas deve ser compreendido como o ‘eu’ do Filho, um ‘eu’ próprio só dele”, em ROSSÉ, op. cit. p. 61-62.

[5] Em ROSSÉ, G., op. cit. p. 62, nota 65; FERLAY, P. Trinité, mort en croix, Eucharistie. Réflexion théologique sur ces trois mystéres. Nouvelle Revue Théologique, 9, p. 937, 1974.

[6] Mc 8,31; depois 9,31; 10,32ss.

[7] ROSSÉ, G., op. cit. p. 63; cf. Mc 14,36 no horto do Getsêmani: “Abba...não o que eu quero, mas o que tu queres.”

[8] Cf. ROSSÉ, G., op. cit. p. 63.

[9] Op. cit. p. 64. O escárnio e a decepção dos representantes de Israel que espera o libertador: “O Cristo, o Rei de Israel... que desça agora da cruz, para que vejamos e creiamos!” (Mc 15,32).

[10] DORMEYER, D. Der Sinn des leidens Jesu. “Stuttgarter Bibel-Studien”, 96, Stuttgart, 1979. p. 87. Em ROSSÉ, G., op. cit. p. 67.

[11] ROSSÉ, op. cit. p. 67.

[12] Vanhoye, A., Structure et théologie des récis de la Passion dans les évangiles synoptiques. Nouvelle Revue Théologique, 2, p. 156, 1967, “Ato de suprema obediência filial, a morte de Jesus realiza a união perfeita de sua humanidade com Deus e leva portanto à formação do homem novo, perfeitamente consagrado pela invasão da glória de Deus”; cf. RICOEUR, Paul; LACOCQUE, André. Pensando biblicamente. Tradução Raul Fiker. Bauru, SP: EDUSC (Editora da Universidade do Sagrado Coração), 2001, “Elevado da singularidade à exemplaridade, o sofrimento é, além disso, radicalizado pela expressão ‘abandonado por Deus’. Os exegetas falam a este respeito do Urleiden des Gottesverlassenheit”, p. 234-239.

[13] Cada povo, cada religião possui tal livro arcano. Tal livro-arcano não se lê por princípio historicamente, nem exegeticamente, nem sociologicamente, psicologicamente, literariamente. Todas essas abordagens de diferentes ciências não são erradas. Mas, não atingem, não tocam o espírito, a essência desses livros. E se essas abordagens científicas de alguma maneira podem ser úteis para ler melhor os livros arcanos na sua essência, então, somente para quem já antes através de um intenso empenho, confronto existencial com esses livros, está por dentro do espírito e essência de tais livros.