Espiritualidade na medicina: ‘Fé não garante cura, mas sem ela fica mais difícil’, diz geriatra

Para Fábio Nasri, coordenador de grupo focado no tema do Hospital Albert Einstein, pesquisas mostram que tratamento de pacientes deve considerar também suas crenças

O geriatra Fábio Nasri Maria Isabel Oliveira

 

Por Elisa Martins — São Paulo

 

Desde os tempos dos “primeiros médicos”, os xamãs e curandeiros, espiritualidade e medicina caminharam juntas. Depois, se separaram, como se fossem opostas. A relação tem sido resgatada recentemente, no Brasil e no mundo, puxada por pesquisas que mostram a influência da espiritualidade em desfechos favoráveis de saúde.

No mês passado, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, criou um grupo médico-assistencial focado no tema. O objetivo é aprofundar os conhecimentos na combinação entre espiritualidade e medicina, e em como ela pode aumentar o bem-estar de pacientes, inclusive levando líderes religiosos para os leitos, quando solicitados.

Em entrevista ao GLOBO, o coordenador do grupo, o geriatra Fábio Nasri, é enfático: “Quando o paciente entra no hospital, não pode entrar só o coração, o apêndice. É preciso considerar toda a dimensão dele, inclusive a espiritualidade. Ela pode ser mais uma ferramenta poderosa de saúde”.

 

Por muito tempo a medicina foi tida como uma área objetiva e direta, e a espiritualidade, como algo subjetivo, quase como se uma fosse impeditiva da outra. Afinal, elas combinam?

A espiritualidade é parte das pessoas. Mesmo quem não tenha uma fé, crença ou religião, interage com a natureza, com o clima, com o sol. Não podemos negligenciar essa dimensão nas pessoas, seria apartar algo intrínseco ao cuidar da saúde delas. Houve uma separação no passado. Mas a tendência hoje no Brasil e no mundo é de juntar esses valores novamente. Não há como atender um paciente, dar a notícia de que ele tem um câncer, dizer que ele vai fazer uma cirurgia complicada ou que tem uma doença crônica sem atendê-lo como um ser completo. E a espiritualidade não pode ficar de fora. Pode, inclusive, ser ferramenta adicional no arsenal terapêutico.

 

Os “primeiros médicos” eram líderes espirituais, os xamãs. Como se deu essa separação?

Vem de muito tempo. Desde a teoria da razão de (René) Descartes, houve interesse também da Igreja de que houvesse essa separação. Como se fosse um acordo do tipo: "Olha, vocês ficam com o corpo, a gente fica com a alma". Ao mesmo tempo, a Ciência começou a se desenvolver, e houve uma espécie de materialização das sensações. A medicina seguiu um curso reducionista.

 

O que levou à reaproximação?

Começaram a acontecer fatos que chamavam a atenção, em vários campos da Ciência médica. Primeiro as experiências de quase-morte, em que pessoas que passavam por períodos de morte momentânea e retornavam relatavam experiências de encontrar entes queridos. Outros pesquisadores começaram a publicar casos de lembranças de vidas passadas. Existem relatos impressionantes de crianças que em idade muito tenra lembravam de vidas pregressas. Ao mesmo tempo, tornaram-se mais conhecidos desfechos favoráveis de saúde em pessoas com a espiritualidade mais presente. Elas iam melhor em uma série de quesitos.

 

Que efeitos a espiritualidade produzia nesses pacientes?

Passavam melhor pelas doenças, pelo pós-operatório. Não falo de cura, mas de vivência do processo, de como atravessam um período duro. Pesquisas ao longo do tempo mostram que quem realmente acredita, tem fé, tem uma evolução melhor. Isso chamou atenção, e os estudos aumentaram. É um caminho sem volta.

 

A Ciência comprova esses benefícios?

Diversos artigos mostram isso. Quando uma pessoa faz uma prece, independentemente da religião, a frequência cardíaca tende a diminuir, a pressão cai. Há uma série de fenômenos pensando em neurotransmissores e estimulação cerebral que fazem bem às pessoas que têm a espiritualidade intrínseca. Diminui a atividade do sistema simpático, responsável por aumentar a pressão e a frequência cardíaca. Melhora a perfusão cerebral. Ativa sensações ligadas a prazer e bem-estar libera ocitocina, serotonina. E não necessariamente precisa de um templo para isso. A pessoa pode admirar música, o pôr do sol, meditar, fazer yoga. Normalmente quem segue esses preceitos acaba sendo mais saudável, por questão de conduta. Mas também existe um outro lado.

 

Quando a espiritualidade pode fazer mal à saúde?

Existem pessoas que se dizem religiosas, mas não incorporam esses valores em suas vidas. Então não colhem os benefícios. Existem também as que acham que só a crença vai curá-las. E desistem do tratamento. Ou vão a outros lugares onde entendem que vão ser curadas, mas não são espaços de índole adequada. É preciso cuidado também. O que vemos na medicina é que não dá para sair dizendo que a fé é garantia de cura. Mas dá para dizer que sem ela é mais difícil.

 

A delicadeza do tema explicaria por que médicos ainda são receosos de abordá-lo em consulta?

Existem pesquisas que mostram que os pacientes gostariam que os médicos abordassem esse tema no consultório. E existem pesquisas entre médicos, inclusive no Brasil, que é líder de estudos na área, que indicam que eles gostariam de falar mais sobre isso com os pacientes. Mas há médicos que receiam que os pacientes achem que eles querem levá-los para a igreja deles. Além disso, numa consulta em que o médico tem de verificar pressão, colesterol, tratar câncer, avaliar a memória etc, nem sempre sobra tempo. Mas o principal motivo é que os médicos não têm treinamento para isso. Não é só sair perguntando: “E aí, você tem alguma religião?” Há uma estratégia, e poucas escolas brasileiras oferecem aulas sobre isso.

 

A pandemia reforçou a importância da espiritualidade em momentos críticos?

Outro dia, cheguei no hospital cedinho para ver pacientes e me surpreendi quando vi a equipe que estava pegando o plantão formar uma roda e fazer uma prece para que tudo corresse bem, para que pudessem ser instrumento de auxílio aos doentes. Vi depois que era prática em vários momentos no hospital. E isso talvez seja um efeito pós-pandemia. Um dos maiores pesquisadores dessa área já preconizava os benefícios de que médicos orassem junto com os pacientes antes de uma cirurgia ou procedimento. Mas ainda não é algo muito difundido.

 

Para que lado caminham as pesquisas?

Muitos estudos mostram a associação positiva entre espiritualidade e bons desfechos em saúde. Várias sociedades médicas brasileiras já incorporaram esse tema. O pulo do gato é como isso acontece. É fácil explicar e a pessoa entender que no momento em que ora, medita ou vai a uma cachoeira isso traz benefícios para os sistemas endócrino, cardiovascular, etc. O problema é como isso acontece no nível da célula. Qual é a proteína? Como essa energia entra? É algo do DNA? Não sabemos. Precisamos abrir a cabeça. Ainda vai demorar para descobrir. Fonte: https://oglobo.globo.com