ORDEM TERCEIRA DE CARMO DE MINAS/MG

Encontro sobre a Espiritualidade Carmelitana.

Dias 9 e 10 de novembro-2017.

Com Frei Petrônio de Miranda, O.Carm.

Delegado Provincial para Ordem Terceira do Carmo.

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Tema: O Voto de Pobreza.

*Frei Quinn R. Conners, O. Carm.

Os Votos

Os três votos professados pelos irmãos e irmãs d Ordem Terceira do Carmo estão enraizados nas Escrituras. Eles são uma expressão dos valores do Evangelho. Contudo, eles se encarnam num determinado momento histórico, refletindo assim as necessidades e as esperanças psicológicas e espirituais das pessoas e do tempo em que vivem. Nossa discussão sobre cada um dos votos partirá de suas raízes espirituais ou teológicas. Reconhecemos que os votos não são entidades autônomas. Cada voto tenta exaltar um lado distinto da vida humana, dos valores evangélicos, da vida cristã e carmelitana. No entanto, cada voto está relacionado intimamente ao outro. A partir de nossa breve abordagem histórica, veremos que antigamente todos os votos estavam subordinados ao voto de obediência. Este inter-relacionamento dos votos fica evidente quando tentamos descrever cada um deles.

Pobreza – A matéria bruta em transformação

Ao contrário da obediência, encontrar as raízes bíblicas da pobreza exige algum esforço. Obediência é uma palavra bíblica bem comum, enquanto que pobreza ocorre com menos frequência. Contudo, a chave para a pobreza é a consciência de que ela deve estar enraizada na fé e no amor que nos une a Deus. De fato, num sentido bíblico a pobreza e a obediência estão intimamente relacionadas. Se obediência é o compromisso de ouvir a voz de Deus, a pobreza é o compromisso de responder a esta voz.

Em geral, as Escrituras olham a pobreza de um modo bem prático. Basicamente, os bens materiais são apresentados de uma maneira positiva. Eles são um dom de Deus, reflexo da criação de Deus. Por outro lado, a pobreza e a espoliação não são boas. Elas representam uma distorção da bondade de Deus. Portanto, um dos compromissos da Aliança era que todos mereciam atenção: ninguém deveria passar necessidades, ninguém deveria ser pobre. Quando Lucas retrata a comunidade de Jerusalém após a Páscoa, ele a descreve precisamente nestes termos como a realização da comunidade ideal ansiada por Israel: “Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas... conforme a necessidade de cada um” (At 2,44-45).

Contudo, Israel e as igrejas do Novo Testamento também conheciam a tentação em ter tantos bens. As divisões entre os ricos e os pobres emergiram desde cedo na história de Israel. Eventualmente vozes proféticas, de Elias a Jeremias, surgiam contra os ricos e poderosos porque eles maltratavam os indefesos. Amós e Oséias denunciavam os ricos por ignorarem os pobres.

Assim, surgem duas correntes bíblicas sobre os bens nas escrituras hebraicas e persistem até o Novo Testamento. Primeiramente, os bens são bons quando servem como instrumentos e expressões da dignidade humana que recebemos como filhos de Deus. Em segundo lugar, numa comunidade baseada na fé em um Deus que é misericordioso e compassivo, ninguém deveria sofrer com a falta de alguma coisa.[i]

O Novo Testamento também tem uma visão prática dos bens. Uma grande riqueza é vista com ceticismo que nasceu da experiência. Jesus viveu num tempo onde existia uma grande divisão entre ricos e pobres. Ter muitos bens exige sua atenção nas coisas, não em Deus. “Onde está o seu tesouro, está o seu coração”. As pessoas que possuem muita colheita necessitam construir muitos celeiros, em vez de pensarem sobre o destino de suas almas. Aqueles que pisam em Lázaro e em suas feridas para entrarem nos salões do banquete estão também muito preocupados para ouvirem a voz da profecia. Aqueles que encontram conforto e poder naquilo que possuem podem estar cultuando a riqueza como se fosse seu Deus.

Estes são os exemplos de Jesus sobre riqueza e bens. Eles são pragmáticos e baseados na experiência. “Algumas de suas intuições mais explícitas sobre os bens são estabelecidas no contexto de metáforas sobre viagens”.[ii]  Carregue apenas um cajado. Muita riqueza é simplesmente muita bagagem. O jovem rico foi embora muito triste – tinha muita bagagem. Zaqueu, buscando a aprovação de Jesus, dá metade de suas riquezas.

Caminhar nas pegadas de Jesus é uma jornada de fé e de serviço. Devemos estar livres para esta jornada. Esta realidade influencia as parábolas de Jesus sobre os bens:

“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mc 8,34-36).

Quando os discípulos hesitam, imaginando que se arriscaram muito, Jesus lembra mais uma vez o chamado da liberdade:

Pedro começou a dizer a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”. Jesus respondeu: “Eu garanto a vocês: quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, filhos, campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes mais. Agora, durante esta vida, vai receber casas, irmãos, irmãs, mãe, filhos e campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna” (Mc 10,28-30).

O pensamento de Jesus é claro: “O que chamamos de pobreza evangélica é aquilo que os evangelhos chamam de colocar de lado qualquer coisa que nos impeça de seguir Jesus. Jesus era totalmente livre, livre para seguir a orientação do Espírito, livre para trilhar pelas margens da sociedade de seu tempo, livre para estar em comunhão com os pobres, livre para tocar naqueles que precisavam de cura, livre para acolher a raiva e a violência, livre para ouvir a voz de Deus”.[iii]

A Bíblia fala positivamente do pobre, mas não da pobreza. Os pobres são o objeto da compaixão de Deus e, por isso, deveriam ser do interesse do povo de Deus. Aos olhos da Bíblia os pobres têm uma vantagem sobre os ricos: é menos provável que eles sejam seduzidos por uma profusão de bens. Por estarem indefesos e vulneráveis sua única força é Deus.

Assim, as raízes bíblicas da pobreza são simples. Bem-aventurados os pobres porque deles é o reino de Deus. Bem-aventurados os que têm fome de Deus e de seu reino que colocam de lado todos os empecilhos, toda bagagem e seguem Jesus para a realização de suas esperanças.

Existem duas motivações bíblicas óbvias para deixarmos de lado os bens. Primeiro, o voto de pobreza nos permite a liberdade de colocarmos o excesso de nossos bens à disposição dos necessitados. Segundo, o voto nos torna livres daquelas posses que poderiam nos impedir de seguir Jesus.[iv]

Na Regra, a pobreza aparece no n. 12. A visão é aquela das primeiras comunidades apostólicas cujo objetivo é preservar o bem comum. A pobreza em si não é o ideal. O bem de todos os irmãos e irmãs é o ideal. Portanto, partilhamos o que temos uns com os outros de modo que ninguém tenha necessidade de qualquer coisa.

Contudo, o bem comum em si não é um tipo de comportamento nivelador ou cego de modo que a singularidade de cada pessoa se perca ou desapareça sob uma monotonia ou uniformidade superficial. O objetivo de partilhar todas as coisas em comum é colocado no contexto onde também saibamos reconhecer as necessidades individuais – “conforme cada qual estiver precisando, levando-se em consideração as idades e as necessidades de cada um”.[v]  A Regra nos desafia a assumir nossa responsabilidade em determinar o que precisamos e avaliá-las no contexto das necessidades da comunidade.

Cada ser humano estabelece algum tipo de relacionamento com o mundo econômico. Universalmente as pessoas tendem a medir o sucesso na vida através deste relacionamento. O que eu ganho na esfera econômica? De quantas maneiras posso ser dominado pelo mundo que me rodeia? A minha doação é benéfica ou maléfica, libertadora ou escravizante?

Ao professarmos a pobreza não escapamos destas perguntas e da luta que elas representam. Estamos simplesmente dizendo que, através de nossa profissão para ser verdadeiramente humanos, queremos partilhar o que temos, viver simplesmente, desenvolver um espírito de desprendimento e sermos solidários com os necessitados e pobres de fato.

Partilhar

Partilhar não significa necessariamente dar um testemunho poderoso, mas é uma prática que nos une e nos ensina sobre nossa dependência de Deus e dos outros. A solidão e a indiferença mútua que experimentamos algumas vezes na vida comunitária estão muitas vezes relacionadas com questões envolvendo os bens comunitários. Muitos bens e conveniências pessoais embaralham nossas mentes e nossos corações e nos afastam de qualquer necessidade sentida na vida comunitária. A necessidade de partilhar nossos bens, de chegar a um acordo em nossas preferências, de estar satisfeitos com o bem-estar comum – tudo isso proporciona várias oportunidades para aquele apoio e desafio que são a essência da vida comunitária. A partilha dos bens por sua vez, proporciona um meio de também partilhar os interesses, as preocupações, as memórias, as aspirações e a oração.

Viver de modo simples

Viver de modo simples em nosso mundo consumista é um grande desafio. Muitos bens materiais podem nos provocar o esquecimento de quem nos fez e do porquê estamos aqui. Uma vida mais austera abre perspectivas, novas ou esquecidas no conhecimento de Deus. Libertados das distrações e da busca ilusória de nossos pequenos confortos e luxos, permanecemos diante de Deus um pouco mais como somos – como seres humanos com fome de Deus, necessitados da misericórdia de Deus, nunca realizados ou satisfeitos a não ser em Deus (vacare Deo).

A austeridade de vida nunca é fácil para um indivíduo ou para uma comunidade. Cada grupo etário, cada tipo de personalidade, cada cultura humana tem seus pontos fortes e suas fraquezas neste domínio. É um desafio avaliar continuamente nosso estilo de vida, com respeito uns pelos outros e fazer cada vez as mudanças necessárias que nos levarão para mais perto de Deus, dos outros e do povo de Deus ao nosso redor.

Ser desapegado

O voto de pobreza sem uma simplicidade material é certamente considerado suspeito. Contudo, a observância fiel do voto não pode ser medida em termos puramente econômicos. O significado mais profundo de nosso voto de pobreza nos desafia a um desapego, tanto espiritual como material. Nos capítulos 1-8 de seu livro Noite Escura, João da Cruz descreve enfaticamente a transformação a qual Deus nos chama através deste espírito de desprendimento.

Ser solidário

A pobreza voluntária não pode estar separada ou independente da pobreza involuntária experimentada por tanta gente do povo de Deus em nosso planeta. Se estamos realmente caminhando nas pegadas de Jesus, então o interesse dele pelos pobres, pelos sofredores e fracos de nosso mundo deve tornar-se também nosso. Jesus viveu no meio de pessoas que eram consideradas impuras: publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mc 2,16. 1,40; Lc 7,37). Ele reconheceu a riqueza e o valor que os pobres possuíam (Mt 11,25-6; Lc 21,1-4). Ele os proclamou felizes porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20: Mt 5,3). Ele definiu sua missão como “anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4,18). Ele mesmo viveu com os pobres, sem possuir nada, nem mesmo uma pedra onde repousar a cabeça (Lc 9,58). Ele ordenou, a quem quisesse segui-lo, que escolhesse Deus ou o dinheiro (Mt 6,24). Ele ordenou fazer uma opção pelos pobres (Mc 10,21). Como realizamos isto?

Em primeiro lugar, um grande desafio para nós é redirecionar nosso trabalho nos ministérios atuais. Justiça para os pobres – aquela justiça que é “parte essencial do evangelho”[vi]  – deveria ser uma preocupação em tudo o que realizamos. Quando trabalhamos entre os saciados e os ricos, o desafio é motivá-los a ajudar, a ampliar seu pensamento e a estimular sua boa vontade. Os trabalhos em nossas paróquias, escolas, etc., precisam envolver também os participantes ricos, para que eles possam experimentar realmente os problemas dos pobres e dos marginalizados.

Provavelmente o modo mais importante de viver este voto é ser solidário com os pobres. A carência material é um mal. Não queremos idealizá-la, mas superá-la tão eficazmente quanto possível. Não podemos fingir sermos exatamente como os pobres. Mas podemos conhecê-los e partilhar seus interesses e seus fardos mais plenamente. Nossa educação e influência como religiosos podem ajudar a dar voz e compreensão à luta dos pobres. A experiência única que eles têm de Deus e da divina providência é um presente para nós. Temos muito a dar e a receber uns aos outros. Este é o significado da solidariedade – “permanecemos juntos como Maria permaneceu com João aos pés da cruz e experimentamos uma nova fonte de poder”.[vii]  Tal postura é observada em nossa tradição carmelitana. Estaremos realmente próximos de Jesus na medida em que experimentarmos esta transformação em nossa solidariedade para com o pobre. Quanto mais estivermos perto dos pobres, experimentaremos esta transformação em nosso relacionamento com Jesus.

* COMISSÃO INTERNACIONAL PARA O CARISMA E A ESPIRITUALIDADE

Comunicações Carmelitanas- Melbourne Austrália. 1999

[i]  D. Senior, C. P. “Vivendo neste ínterim: princípio bíblico para a vida religiosa”. Em P. Philibert, O.P., (ed.), Vivendo neste ínterim. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1994, p. 63.

[ii]  Senior, p. 64.

[iii]  Ibid.

[iv]  Senior, p. 65.

[v]  RA 12.

[vi]  Justiça no Mundo, Declaração do Sínodo dos Bispos, 1971.

[vii]  D. A. Fleming, S.M. Anotações do peregrino: uma experiência de vida religiosa. Maryknoll, NY: Orbis, 1992, p. 35.