Por Joaquim Ferreira dos Santos

 

Hoje é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa | Divulgação – Internet

 

“Você é freelancer?”, me inquiriu Grande Otelo.Eu entrevistava o ator, glória das artes nacionais, e o assunto era o passado das escolas de samba. Otelo, também compositor, era parceiro de Herivelto Martins no clássico “Praça XI”, e eu queria saber detalhes sobre as gambiarras que as escolas carregavam para iluminar os desfiles pioneiros naquele canto do Rio. Foi aí que ele deixou de lado o sorriso de comediante e botou o “freelancer” no meio. Eu ainda redargui que não, orgulhoso da carteira profissional recém assinada pelo jornal. Mesmo assim, Otelo completou irônico:

“Pois, meu filho, isso é pergunta de freelancer!” – e se recusou a responder.

Décadas depois eu continuo sem saber o que seria uma pergunta de “freelancer”, mas seja o que fosse, fosse o que seria, eu estou me lembrando dela porque hoje é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e eis a ocasião propícia para dizer que não só toda maneira de amor vale a pena, mas toda maneira de perguntar mais ainda.

Semana passada, a uma repórter que queria uma explicação sobre sua foto com a expressão miliciana “CPF cancelado”, o presidente da República também desdenhou e classificou a pergunta de “idiota”. Mais do que perguntas de “freelancer”, perguntas idiotas são fundamentais para explicar o Brasil 2021.

Tem ainda a pergunta que não quer calar, a pergunta de um milhão de dólares, a pergunta de algibeira. Na rotina cotidiana de não sair de casa sem elas, o cartão de crédito que a sociedade lhe deu, o jornalista parte de um dos princípios basilares desse Dia Mundial da Liberdade de Imprensa – a certeza de que perguntas não ofendem. Já uma resposta ofensiva vai para a conta do entrevistado, e pode ser o lead da matéria.  

Uma vez fui entrevistar um coronel da PM, atrás de informações para compor o perfil de um general que assumiria o Ministério do Exército. Eu precisava de detalhes da personalidade, o lado humano do novo ministro. O que ele gosta fora da caserna?, perguntei. “Escreve aí”, mandou o militar, com a autoridade característica. “O general não gosta de homem com cabelo comprido feito o seu”. Era 1974. Ditadura. Sorri verde e amarelo.

É uma profissão de risco, mesmo para quem se especializou nas amenidades do fait-divers das coisas culturais. Um dia, depois de ler uma crítica adversa, o cantor Fagner mandou me avisar que ao primeiro encontro não faria perguntas e me encheria de porrada. Como se sabe, é um homem nordestino, aquele que antes de tudo é um forte, e graças ao Padim Ciço nunca mais eu e Fagner nos vimos.

O repórter Gabriel García Márquez dizia que, acompanhado de ética como o zumbido acompanha o besouro, ao jornalismo tudo é permitido. Eu estava ungido pelo mais ético desses zumbidos quando perguntei ao John Travolta, ainda não catapultado de volta ao sucesso por Tarantino, como ele definia o fracasso. Travolta magoou. Levantou-se, cumprimentou-me respeitosamente e bateu em retirada. Sua não-resposta salvou a entrevista.

A liberdade de imprensa começa pelo direito a perguntas e é bom que seja celebrada na semana em que a CPI da Covid fará um monte delas para investigar quem matou 400 mil pessoas. Um dia, no tempo da delicadeza, telefonei para Carlos Drummond de Andrade: “O que o senhor acha do biquíni asa delta?”. “Ah, meu caro, quem me dera sabê-lo”, respondeu, sem entrar no mérito se a pergunta era freelancer, idiota ou os dois tipos juntos. Poetas e repórteres sabem – perguntar é preciso, viver também. Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com